Como a nova série de ‘Avatar’, mais sombria, reflete as guerras do mundo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No caminho entre o desenho e o live-action, “Avatar: A Lenda de Aang” se perdeu. Enquanto sua série animada colecionou prêmios, entrou para as dez mais bem avaliadas da enciclopédia do audiovisual IMDB e foi considerada por críticos uma das propulsoras da era de ouro da TV americana nos anos 2000, sua adaptação para os cinemas foi amplamente rejeitada.

Depois de vencer cinco Framboesas de Ouro, que “premia” os piores do ano no cinema, e de se tornar o filme mais mal avaliado da carreira errática de M. Night Shyamalan, “O Último Mestre do Ar” fez parecer que a história sobre humanos que controlam os quatro elementos –água, fogo, terra e ar– não combinava com atores de carne e osso.

Agora, porém, a trama originalmente exibida pela Nickelodeon entre 2005 e 2008 ganha uma nova chance na Netflix, depois de ter sido redescoberta durante a pandemia de Covid-19, com a adição do desenho animado ao catálogo da plataforma em vários países, inclusive no Brasil.

“Avatar: O Último Mestre do Ar”, que misturou a encarnação serializada e a cinematográfica em seu título, chega ao streaming determinada a agradar aos nostálgicos e também a conquistar um público mais maduro, e não apenas aquele que cresceu assistindo à animação.

Em vez de reduzir as três temporadas originais em algumas poucas horas, o remake deve acompanhar os personagens por alguns anos, numa maneira de se prevenir das críticas que acharam o filme de 2010 corrido e superficial.

Isto, é claro, se o público comprovar a popularidade da trajetória de Aang, já que uma segunda temporada ainda não foi anunciada. Até porque, se as estimativas de custo de produção de US$ 15 milhões por episódio estiverem corretas, a produção está entre as 15 mais caras da história da TV e do streaming.

Num mundo em que a relação de cada núcleo familiar com um dos quatro elementos da natureza funciona como uma etnia, criando comunidades ao redor do globo, Aang nasce para se tornar o Avatar, uma espécie de super-humano capaz de controlar os quatro elementos ao mesmo tempo e ser o responsável pelo equilíbrio mundial.

Sempre que um desses líderes morre, outro nasce, e é tentando limitar a influência dos Nômades do Ar, comunidade que abriga o Avatar da vez, que a Nação do Fogo decide promover um massacre. Durante a passagem de um cometa que aumenta seus poderes, soldados são enviados para caçar Aang, mas ele acaba engolido pelo mar e passa um século em criogenia numa geleira.

Quando finalmente acorda, descoberto pelos irmãos Katara e Sokka, da Tribo da Água, Aang não sabe que seu sumiço deu margem para uma guerra entre nações, na qual os dobradores de fogo –aqueles que controlam este elemento– mataram, em teoria, todos aqueles capazes de moldar a água e o ar. O Reino da Terra é o único que ainda não foi subjugado, e resta à dupla ajudar o protagonista a dominar os quatro elementos para pôr um fim ao império de terror flamejante.

Não é só a entrada do desenho na Netflix que fez “Avatar” voltar à tona nos últimos anos. Para os criadores Bryan Konietzko e Michael Dante DiMartino, o culto que se criou em torno da história se deve também à sua habilidade de refletir os problemas da sociedade. Nos anos 2000, aliás, muitos dos elogios à série da Nickelodeon seguiam esse caminho, louvando-a por apresentar ao público infantojuvenil temas densos, como genocídio e tirania.

Este ano, sua saga sobre uma nação querendo se sobrepor às outras, numa falsa crença de superioridade, encontra ecos nas guerras travadas entre Rússia e Ucrânia e Israel e Hamas, por exemplo, e a crise do clima cada vez mais grave também remete à destruição causada pelos dobradores de fogo.

“Há muitos paralelos com o que vivemos. O tema da série é equilíbrio e harmonia, e quando eles não existem é criado um vácuo de poder que permite a ascensão de pessoas perigosas. A Nação do Fogo literalmente queima os lugares por onde passa. É uma série muito mais profunda do que eu imaginava”, diz Daniel Dae Kim, ator que ganhou fama em “Lost” e agora interpreta o tirânico imperador Ozai.

Mas nem todos os dobradores de fogo são maus. O irmão do personagem, Iroh, funciona como uma bússola moral, tentando influenciar o sobrinho, Zuko, que encampa uma busca desenfreada e violenta por Aang para tentar deixar seu pai orgulhoso. “É muito fácil rotular grupos inteiros de pessoas com base nas ações de alguns poucos no poder”, diz o sul-coreano Paul Sun-Hyung Lee, sobre seu personagem.

“Avatar: O Último Mestre do Ar” não poupa o espectador da violência inerente à guerra, e em seus primeiros minutos já mostra um dobrador de terra sendo queimado vivo. Foi uma escolha deliberada, dizem os atores, já que ver batalhas, derramamento de sangue e morte, além de atrair um público mais maduro, pode forçar o espectador a refletir sobre temas urgentes.

Esta opção, no entanto, pode ter sido a causa da saída de Konietzko e DiMartino, os criadores, da adaptação, segundo fofocas de bastidores. Ambos deixaram a série depois de dois anos de trabalho por “diferenças criativas” não especificadas.

Agora, vão ter controle absoluto sobre o novo Avatar Studios, anunciado para abastecer o Paramount+, concorrente da Netflix. Um longa-metragem de animação já está sendo produzido, de olho num lançamento em 2025, mas a ideia é que muitas novas aventuras saiam da iniciativa, a exemplo do que já aconteceu com “A Lenda de Korra”, derivado de 2012 igualmente elogiado e que foi pioneiro na representatividade LGBTQIA+ nos desenhos.

Sem o apoio dos criadores e tendo a longo prazo que disputar atenção com suas novas crias, a Netflix vai ter que se apegar ao aspecto mais realista da sua versão para a lenda de Aang, baseada em contos e tradições asiáticas, em especial as chinesas.

Para isso, houve um amplo investimento em efeitos especiais. Não à toa, a série finalizou suas filmagens em 2022, mas só ficou pronta nos últimos dias, depois de um período de quase dois anos de pós-produção. Os efeitos práticos se limitaram a pequenos detalhes, como luzes de LED nas mãos dos atores da Nação do Fogo, iluminando seus oponentes com o que mais tarde, no computador, se tornariam chamas.

“Buscamos referências no desenho sempre que podíamos”, diz Jabbar Raisani, um dos responsáveis pelos efeitos especiais e diretor de dois dos oito episódios. “O maior desafio foi capturar o tom do desenho no formato live-action e provocar os mesmos sentimentos.”

Aos efeitos computadorizados se soma o trabalho meticuloso de coreografia, que juntou diferentes artes marciais para as batalhas e os processos de dobra de água, fogo, terra e ar. O elenco conta que teve aulas de vários tipos de lutas orientais, para dar autenticidade à fantasia.

Dessa forma, também, “O Último Mestre do Ar” busca driblar algumas das críticas mais ferrenhas feitas ao filme de Shyamalan, criticado por ter um elenco que embranqueceu uma história que era essencialmente oriental, apesar das origens americanas e indígenas do desenho.

Agora, Gordon Cormier, de ascendência filipina, vive Aang, e Kiawentiio, do povo mohawk, é Katara. Ian Ousley, de origem cherokee, interpreta Sokka, enquanto Dallas Liu, sino-indonésio, ficou com Zuko –os dois últimos chegaram a lutar taekwondo e karatê, nesta ordem, profissionalmente.

“Avatar: O Último Mestre do Ar”, assim, parece moldado para superar os erros do passado, mas também para ter vida própria, numa aposta épica e ambiciosa.

AVATAR: O ÚLTIMO MESTRE DO AR

– Onde Disponível na Netflix

– Elenco Gordon Cormier, Kiawentiio e Ian Ousley

– Produção Estados Unidos, 2024

– Criação Albert Kim

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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