Envolvidos em programa de tortura da CIA pós-11 de Setembro ainda são desconhecidos

GUANTÁNAMO, CUBA (FOLHAPRESS) – Como de praxe, James Connell pede autorização do juiz para mostrar um documento à galeria, como é chamada a área apartada do restante da comissão militar de Guantánamo por um vidro à prova de som. Ali, sentam-se os espectadores do processo contra os acusados do 11 de Setembro.

Atrás dos vidros, instalados para impedir que a discussão seja ouvida em tempo real, há cinco televisões fixadas no teto. Um powerpoint surge na tela. Ele foi usado pela CIA no treinamento de interrogadores nos primeiros anos da Guerra ao Terror, afirma Connell, advogado que lidera a defesa de Ammar al-Baluchi, 46, acusado em 2012 dos atentados junto com outros três homens.

A apresentação reproduzida na TV começa com um efusivo “Bom dia !” em letras amarelas sobre um fundo azul-caneta. Um slide sob o intertítulo “debriefing detainees” mostra a foto de um homem nu, vendado e algemado, segurado por trás por um agente mascarado. São listadas diversas etapas, que vão de “deslocamento de expectativas” a “desamparo aprendido”.

“Essa técnica é usada em países estrangeiros para explorar pessoas para propaganda”, comenta em tom de desdém o psicólogo James Mitchell, apontado como uma das mentes por trás do programa da CIA que o próprio ex-presidente Barack Obama (2009-2017) chamou de tortura. Segundo Mitchell, essa abordagem era inútil para extrair informações relevantes da Al Qaeda, mas estava arraigada entre os quadros da CIA.

Ao dar seu testemunho na semana passada à comissão militar, o psicólogo defendeu que o tratamento pensado por ele era bem estruturado e embasado cientificamente, culpando outros por “excessos”.

“NX2 pensava ‘machuque até eles dizerem o que você quer saber, e depois machuque mais para garantir que eles não mudem a história’”, afirma ele sobre outro agente, que chefiava interrogatórios em uma prisão secreta frequentemente comparada a uma masmorra.

Além de NX2, uma série de outras sequências de letras e número são citadas durante a audiência. Cada uma faz referência a um participante do programa cuja identidade até hoje é mantida sob sigilo. As prisões secretas também são referidas como números (“localização 2”, “localização 3” e assim por diante).

Mitchell tem acesso a papéis sigilosos que conectam cada código a um nome. Toda vez que precisa checá-los para responder uma pergunta, ele reclama de que a lista está fora de ordem.

“Se servir de consolo, eu nunca vi esses papéis”, diz Connell, com um humor amargo, cutucando um dos problemas centrais do caso: a confidencialidade de uma série de documentos e evidências imposta pelo governo, aos quais nem os réus têm acesso.

Mitchell e seu parceiro, o psicólogo Bruce Jessen, estão entre os poucos integrantes do programa cuja identidade é conhecida. Eles começaram em 2002 como consultores, trabalho pelo qual receberam pouco mais de US$ 1 milhão cada um até 2005. Naquele ano, os dois abriram uma empresa, que foi contratada pelo governo para fornecer interrogadores, guardas e fazer treinamentos. Até 2009, quando o contrato foi encerrado, o negócio faturou US$ 81 milhões.

“Ofereceram Mitchell e Jessen como uma espécie de bodes expiatórios porque eles eram terceirizados. Eles eram uma peça importante da engrenagem, mas uma pequena parte de toda essa burocracia”, afirma Connell à Folha de S.Paulo. “A comissão militar existe em parte para proteger os outros integrantes do programa e impedir que eles sejam indiciados.”

Os próprios Mitchell e Jessen não correm esse risco –um acordo com a CIA os protege de persecução penal. Ações civis contra os psicólogos, porém, foram abertas. Em uma delas, encerrada em 2017, eles fecharam um acordo antes de irem a julgamento. O valor pago não foi revelado.

Advogados de defesa mostram também diversas trocas de comunicação originalmente confidenciais entre a CIA e seus agentes reportando o andamento das “sessões das técnicas avançadas de interrogatório”. Além dos interrogadores, há médicos, intérpretes, técnicos de vídeo, logística e administrativos presentes.

“As pessoas pensam em tortura como um indivíduo em uma sala com um martelo ou algo do tipo, mas não é isso. Ela exige toda uma burocracia para administrar o programa. Isso não ocorre apenas nos EUA, vimos em todo o país que usou a tortura como um instrumento de Estado”, afirma Connell a jornalistas no centro de imprensa de Guantánamo, um caixote sem janelas em um terreno descampado.

“Uma das coisas que vemos com o Mitchell é justamente como ele passa de uma engrenagem na máquina para um papel significativo da burocracia através de seus contratos”, declara.

Os quatro réus do processo, incluindo o acusado de ser o cérebro por trás dos atentados, Khalid Sheikh Mohammed (KSM), foram capturados pelos EUA em 2002 e 2003 e mantidos em prisões secretas da CIA no exterior conhecidas como “black sites”. Em 2006, eles foram enviados a Guantánamo, onde permanecem até hoje.

O que aconteceu exatamente com eles em todo o período em que estiveram sob custódia da CIA ainda é envolto em segredos. Há dez anos, o Comitê de Inteligência do Senado divulgou um sumário de pouco mais de 500 páginas com os resultados de sua investigação sobre o programa. É uma fração do relatório completo, com mais de 6.000 páginas, que permanece confidencial até hoje.

FERNANDA PERRIN / Folhapress

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