SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – O Judiciário brasileiro reconheceu pela primeira vez a nulidade da criação de uma Unidade de Conservação em um território de comunidade tradicional. A vitória é do quilombo Bombas, localizado no Vale do Ribeira, contra o Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira). Cabe recurso.
O parque foi criado em 1958 pelo governo de São Paulo. Hoje, é administrado pela Fundação Florestal, que atua no manejo, conservação e ampliação de florestas e unidades de conservação no estado. A área, no entanto, já era habitada pela comunidade quilombola Bombas, que desde 2013 trava na Justiça uma disputa contra o parque e as consequências de sua criação.
Segundo os moradores, um dos problemas causados pelo parque diz respeito ao acesso à comunidade, que se dá por meio de trilhas em condições precárias de conservação. A situação não permite o transporte por veículo e, às vezes, nem por animal. “São 12 km de caminhada até sair na rodovia lá embaixo, que é a estrada principal. São 12 km de trilha terrível”, diz o quilombola Edmilson Furquim, 45.
“Até agora, há pouco tempo, nem energia tinha nas comunidades. Implantaram uma energia faz dois anos, mas se [a gente] pede para fazer uma manutenção, os caras não vêm porque é uma comunidade. Agora com essa sentença da juíza, vai mudar muita coisa, e já começou a mudar”, acrescentou.
No dia 29 de dezembro de 2023, a juíza Hallana Duarte Miranda, do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), decidiu pela nulidade da área do Petar que se sobrepõe ao Bombas e reconheceu o território quilombola em sua integralidade.
A magistrada ainda determinou à Fundação Florestal a apresentação de planejamento para a construção da estrada, com prazos, e fixou multa em caso de descumprimento. Com a sentença, fica definido que o poder público estadual e a comunidade quilombola exercerão a gestão compartilhada do território, tomando decisões conjuntas.
Procurada, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo disse que a Fundação Florestal já vem empreendendo ações em conjunto com comunidades quilombolas nas unidades sob sua gestão. Não ficou claro, porém, se o governo vai ou não recorrer da decisão a Fundação afirmou que não deve haver antagonismo entre grupos que lutam pela justiça ambiental e climática e que se manifestará no processo de acordo com essa premissa.
A assessora jurídica da Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira), Rafaela Miranda, relata que os impactos na comunidade foram sentidos muito antes de a equipe procurar a Defensoria Pública. Foi em 2013, após mais de dez anos de diálogo com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e tentativas frustradas de solução dos conflitos socioambientais, que a comunidade buscou a Defensoria.
“Pessoas morreram sem atendimento médico, fora os conflitos fundiários que geraram ameaça à vida dos moradores, que somado à criminalização da roça de subsistência expulsou muitos quilombolas do local”, diz Miranda.
A roça coivara, praticada no quilombo, é aquela destinada ao consumo familiar e à venda em pequena escala. Em 2018, a prática foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
“Desde 2002, quando o Itesp [Instituto de Terras do Estado de São Paulo] conclui o Relatório Técnico-Científico em que reconhece o território quilombola, a comunidade luta pelo direito de exercer plenamente o modo de vida tradicional, violado por proibições e restrições decorrentes da sobreposição do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira”, afirma o defensor público à frente do caso, Andrew Toshio.
“Trata-se de conflito histórico que se arrasta há mais de um século, quando áreas ambientalmente protegidas começaram a ser desenhadas e criadas excluindo e ignorando a existência de comunidades que já viviam nesses territórios, afetando indígenas, quilombolas, caiçaras”, continua.
Toshio diz ainda que, em 18 de janeiro deste ano, o governo de São Paulo promoveu audiência pública para compartilhar estudos ambientais sobre a estrada, mas o cronograma de construção ainda não foi entregue. “Motivo pelo qual não é possível estimar quando o acesso comunitário será regularizado”, afirma o defensor.
De acordo com os quilombolas, a sobreposição do parque provocou violações de direitos da comunidade, como processos de expulsão direta e indireta, deslocamentos involuntários e inviabilização do modo de vida tradicional com pesca, roça e extrativismo.
Qualquer construção feita em área remanescente de quilombo precisa ser discutida e aprovada com os quilombolas, conforme previsto pelo direito à consulta prévia, da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Logo após o ingresso com a ação judicial, no ano de 2014, o governo passou a autorizar a prática de roça tradicional.
A comunidade é reconhecida pela Fundação Cultural Palmares desde 2005, mas a titulação do território pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) dependerá da decisão definitiva a respeito deste imbróglio. Caso haja discordância da Fundação Florestal, do Itesp e do governo de São Paulo, será necessário aguardar posição final da Justiça.
Se a decisão judicial for mantida, o governo estadual deverá promover o levantamento fundiário, a análise da legitimidade de eventuais domínios particulares, a desapropriação ou o pagamento de indenização, a desintrusão de terceiros, a outorga de domínio à comunidade e o registro do título em cartório.
O estado, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, disse ainda que, nos últimos anos, a Fundação autorizou roças, prestou auxílio no resgate de pessoas enfermas e levou de helicóptero placas solares ao quilombo Bombas, além de conduzir o licenciamento do acesso à comunidade.
O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford
MARIANA BRASIL / Folhapress