Fala de Michelle em ato de Bolsonaro é questionada por apontar supremacia cristã

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No alto do carro de som, ela chorava. Em tom de pregação, dizia que “o Brasil é do Senhor” e que o povo brasileiro é de bem e “defende os valores e princípios cristãos”.

Não era a primeira vez que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) cumpria o papel de aglutinar o eleitor religioso em torno de seu marido, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Mas no domingo (25), em ato na avenida Paulista em defesa dele, ela foi mais direta em seu recado.

“Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião, e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento da libertação. Eu creio em um Deus todo poderoso capaz de restaurar e curar nossa nação”, afirmou aos milhares de apoiadores.

O discurso de Michelle é apontado por especialistas como um aceno para a supremacia cristã e uma ameaça para a laicidade do Estado. Segundo eles, política e religião sempre estiveram entrelaçados no Brasil. O problema é quando alguém planeja impor os valores de determinada religião a toda a nação –como teria acontecido no governo Bolsonaro.

“Política e religião já estão profundamente misturados no Brasil. É melhor reconhecer que a política está profundamente atravessada pela religião e fazer com que essa relação seja democrática”, diz o teólogo Ronilso Pacheco, diretor de programas no Iser (Instituto de Estudos da Religião).

Pacheco afirma que o perigo da fala de Michelle é apontar para uma teocracia, uma forma de governo submetida a normas de uma religião.

“Ela fala de uma imposição cristã conservadora. Ela está dizendo, em outras palavras, que durante muito tempo abriu-se mão de reconhecer e militar por uma supremacia cristã conservadora no Brasil.”

A ex-primeira-dama sugere em seu discurso a destruição da laicidade e da neutralidade do Estado diante de outras religiões, diz Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico e doutor em ciência política pela USP.

“Ela faz isso de uma forma muito sagaz, dizendo que a religião cristã representa o bem. Quem vai ser a favor do mal? Isso é muito populista e muito popular. Ainda mais dentro de uma sociedade religiosa como a brasileira.”

Michelle não fala só para os evangélicos, mas para os cristãos como um todo. Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital, produzido pela USP, 43% dos manifestantes entrevistados no ato de domingo eram católicos, e 29%, evangélicos.

Ao longo da corrida eleitoral de 2022, a presença da ex-primeira-dama foi explorada pela campanha de Bolsonaro, com o intuito de suavizar a imagem do ex-presidente e diminuir sua rejeição entre as mulheres —uma de suas principais fraquezas.

Desde aquele período, os discursos de Michelle tinham um tom de pregação, com muitas referências a Deus, buscando atrair o eleitor religioso. Na época, ela comparou a disputa a uma “guerra espiritual”.

“Ela é vista como um exemplo. Como mãe, esposa, realmente evangélica, que nasceu em região periférica, que se virou na vida”, afirma a pesquisadora Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva no Iser.

“Tem um reconhecimento dessa base com relação a essa mulher que representa tudo isso, comprometida com a família e com a missão assumida pelo seu marido de governar a nação. Ela é uma figura importante de mobilização desse campo”, diz.

Presidente do PL Mulher, Michelle é considerada um importante ativo no partido e tem se engajado na filiação de outras mulheres à legenda. Seu nome é considerado para uma candidatura ao Senado e chegou a ser aventado até para a Presidência —possibilidade que desagrada Bolsonaro.

Também foi mencionada uma possível candidatura de Michelle para o Senado pelo Paraná, caso a Justiça Eleitoral determine a cassação do mandato do senador Sergio Moro (União Brasil).

A instrumentalização da religião não é particular da ex-primeira-dama ou de Bolsonaro. É estratégia frequente de políticos populistas, que utilizam o tema para mobilizar suas bases, fortalecendo uma identidade em comum e a sensação de pertencimento àquele grupo.

Essa tática também tem como objetivo construir uma narrativa de nós contra eles, antagonizando ateus e membros de outras religiões.

Na Índia, por exemplo, o partido BJP chegou ao poder em 2014, tendo como ideologia central e promovendo o nacionalismo hindu.

Apesar de o país ser em tese um Estado secular, o governo do primeiro-ministro Narendra Modi é acusado de avançar leis que aprofundam a rejeição contra os muçulmanos, principal minoria do país, e fechar os olhos para os crimes contra eles.

Outro exemplo é o do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, com quem Bolsonaro estreitou os laços durante os anos na Presidência. Assim como o aliado, Orbán tem como pilares do governo três preceitos: Deus, nação e família.

Acusado de minar a democracia da Hungria, ele é um dos maiores vocalizadores do nacionalismo cristão, ideologia que se fortaleceu no Brasil com Bolsonaro e nos Estados Unidos com Donald Trump.

“O nacionalismo religioso é muito marcado pela defesa da ideia da identidade do país. De que pertencer e ser fiel a esse país é estar conectado com essa religião específica”, afirma Pacheco. “É uma ideologia de extrema direita.”

Pacheco, do Iser, diz que a religião tem uma capacidade de mobilização importante, e que a direita saiu na frente ao aglutinar os eleitores religiosos.

“Durante muito tempo o campo progressista tentou isolar a religião da esfera pública. A direita entendeu que não, que a religião precisa estar no espaço público porque tem uma capacidade muito grande de agregar e mobilizar”, afirma.

“[A direita] se conecta com grande parte da população para quem a religião é tudo, dá sentido, pertencimento, motivação, sentido de comunidade e solidariedade.”

O nacionalismo religioso esteve presente no discurso de Bolsonaro enquanto presidente, com falas que reafirmavam que o Brasil é um país cristão e excluíam os que não se identificam desta forma.

Mas a ideologia também se revelou nas políticas do governo. Um exemplo se deu na atuação da atual senadora Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

“A gente pode dizer que a visão restritiva em relação a direitos humanos, a questões de gênero e sexualidade, tem uma relação direta com a visão religiosa que o governo encampou”, diz Vinicius do Valle, do Observatório Evangélico. “É a influência da religião suprimindo direitos de determinadas camadas sociais.”

Evangelista lembra do aparelhamento da administração pública federal com figuras de diferentes igrejas, concessões fiscais para o campo religioso e promoção de pautas alinhadas com valores morais cristãos.

Já Pacheco afirma que a política externa foi costurada a partir de um viés ultrarreligioso. Hungria e Brasil se alinharam, por exemplo, na promoção de políticas públicas de gênero conservadoras, de valorização da família formada por um homem, uma mulher e seus filhos.

Damares chegou a participar de um evento oficial húngaro, tratado como uma cúpula demográfica, para falar desse tema. Na ocasião, em Budapeste, ela se referiu a Bolsonaro como um “incrível homem”, que queria colocar o Brasil no cenário mundial “como um país pró-família e pró-vida”.

ANA LUIZA ALBUQUERQUE / Folhapress

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