Brasões das cidades do Brasil valorizam, em geral, economia em detrimento da natureza

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os brasões das mais de 5.000 cidades do Brasil podem ser “lidos” como uma crônica da relação dos brasileiros com os ambientes naturais do país, sugere um novo estudo. A má notícia é que, em grande medida, essa relação é retratada com ares predatórios: a grande maioria dos símbolos municipais destaca lavouras lucrativas, extração de recursos naturais e gado, enquanto espécies nativas raramente são exaltadas.

A análise, que mapeou os elementos que compõem os brasões de 5.197 municípios brasileiros (93,3% do total), saiu em artigo no periódico especializado Anais da Academia Brasileira de Ciências. O trabalho foi coordenado por Juliano André Bogoni, da Universidade do Estado de Mato Grosso, e contou com a participação de colegas da USP, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), do Instituto Juruá (AM) e do Instituto Pró-Carnívoros (SP).

Bogoni contou à reportagem que a ideia para a pesquisa começou a ser gestada quando ele achou uma caneca da década de 1970 retratando o brasão de sua cidade natal, Ipumirim, no interior de Santa Catarina.

“É claro que eu já conhecia o desenho, mas olhei com mais cuidado e fiquei pensando na data de emancipação do município, 1963, e nos elementos retratados, como a agricultura, a araucária e a exploração madeireira”, diz ele.

“Surgiu a questão de saber se esse padrão se repetia no espaço e no tempo, de acordo com o histórico da economia local durante os principais períodos políticos do Brasil.”

Na época, o pesquisador estava fazendo sua pesquisa de pós-doutorado na USP de Piracicaba e se pôs a consultar alguns brasões, como o da cidade onde estava, que faz alusão à piracema (migração de peixes rio acima nas bacias hidrográficas brasileiras).

No fim das contas, Bogoni e seus colegas fizeram um mapeamento de quase todos os municípios do país (só ficaram de fora os que não disponibilizam seu brasão na internet ou os que tinham resolução tão ruim que não era possível analisar individualmente seus elementos gráficos).

A equipe levou em conta os biomas em que as unidades municipais estão inseridas (mata atlântica, cerrado, amazônia etc.) e o momento em que eles foram criados formalmente, desde o Brasil-Colônia até a Nova República após o fim da ditadura militar, nos anos 1980.

Essa dinâmica histórica obviamente influencia a presença de municípios em cada bioma. Na região da mata atlântica, por exemplo, existem 2.775 municípios, bem mais do que a soma deles no pampa, no cerrado e na região amazônica, já que a costa brasileira foi a primeira a ser incorporada pela colonização ao império colonial português a partir do século 16.

Para mapear a “ecologia histórica” do país com base nos brasões, a equipe contabilizou a presença de diferentes categorias de elementos neles: fauna nativa, flora, uso de recursos naturais, práticas agrícolas, tipos de lavouras, tipos de gado, paisagens (rios, lagoas etc.), alusões à cultura indígena e africana e tipos de pesca, entre outros.

A análise dessa multidão de dados mostrou que, em certo sentido, os brasões são estranhamente monotemáticos. Quase metade dos símbolos presentes neles (48,6%) são representações ligadas à agricultura, por exemplo. Depois disso vem a extração de recursos naturais (30,5%) e a criação de gado (30,5%).

Vertebrados da fauna nativa brasileira, por outro lado, equivalem a apenas 5,3% dos símbolos dos brasões (os invertebrados estão em apenas 0,4% dos casos).

Em geral, cada espécie de animal nativo só aparece uma vez no banco de dados, e a grande ironia é que os mais comuns, como onças e antas, em muitos casos só dão as caras no brasão de municípios criados quando esses bichos já tinham sido extintos em seu território.

O mesmo acontece em diversos casos de brasões que retratam culturas não europeias (apenas 2,1% do total de símbolos) -em vários municípios, a simbologia foi oficializada quando os povos indígenas da região retratados neles não existiam mais, por exemplo.

“Embora o Brasil seja provavelmente o país mais rico em espécies do planeta, gerações de líderes políticos decidiram não celebrar essa biodiversidade, priorizando, em vez disso, uma simbologia com ícones de conquista de fronteiras e recursos naturais-chave”, escrevem os autores do estudo.

REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress

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