SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O gás natural é um combustível considerado sujo, porque é fóssil (e, portanto, não renovável) e emite gases de efeito estufa, que acirram o aquecimento global.
Apesar disso, é visto como uma espécie de “mal menor” nas políticas de descarbonização de vários países, porque sua queima libera menos poluentes do que o óleo (derivado do petróleo) e o carvão.
Isso faz do gás uma alternativa para empresas que precisam reduzir suas emissões e ainda não contam com outras fontes de energia limpa.
Dados do governo americano apontam, por exemplo, que o gás natural emite 53 quilos de CO2 por MMBtu (milhão de unidades térmicas britânicas, uma medida de energia equivalente a 252 calorias) o carvão e derivados do petróleo emitem 96 kg e 74 kg, respectivamente.
Como a substituição de outros combustíveis pelo gás é mais fácil e mais barata que a mudança para fontes de energia mais limpas, como eletricidade (o que exige novos equipamentos e sistemas de produção, entre outros investimentos), o gás natural é tido pela indústria e por alguns estudiosos como elemento da transição energética no país.
A ideia é que o setor utilize o gás até que os combustíveis mais sustentáveis, como o hidrogênio verde, tenham escalabilidade industrial e sejam economicamente viáveis.
No final de fevereiro, por exemplo a multinacional norueguesa Hydro, uma das maiores produtoras de alumínio do mundo, iniciou seu plano de substituir todo o óleo que consome por gás natural. O projeto faz parte da meta da empresa de zerar suas emissões de carbono até 2050.
O contrato com a fornecedora de gás natural vai até 2050 e a ideia é que, até lá, a empresa consiga eletrificar seus calcinadores e caldeiras, hoje movidos a carvão e a óleo BPF (óleo combustível pesado, derivado de petróleo) esse último será substituído por gás até o final deste ano.
Como no Brasil a eletricidade vem principalmente de fontes renováveis, a eletrificação é uma das formas de tornar a produção industrial mais limpa. A empresa também estuda o uso de hidrogênio verde, biogás e biomassa.
O uso do gás natural como elemento de transição energética também é defendido pela União Europeia, vanguarda em regulações ambientais e dependente do combustível em sua matriz energética. Paralelamente, nos Estados Unidos, o gás de xisto (um tipo de gás natural) é tido por especialistas como o principal responsável pela queda de emissões de CO2 do país desde 2005, os americanos aumentaram sua produção de gás e em 2011 se tornaram o maior produtor do mundo.
A realidade do Brasil, porém, é mais desafiadora, porque o país está longe de ser um dos maiores produtores de gás natural do mundo e hoje um terço da sua demanda precisa ser suprido por importações em 2022, foram 24 milhões de m3 de gás importados por dia. Além disso, a malha de distribuição de gás natural no país é pequena.
Assim, segundo especialistas, o Brasil precisaria ou ampliar seu mercado de gás ou elevar investimentos em tecnologias verdes, para limpar ainda mais sua matriz energética, o que não é simples, segundo Drielli Peyerl, pesquisadora da Universidade de Amsterdã: “O Brasil tem uma dependência tecnológica muito grande; estamos importando a maioria dessa tecnologia de renováveis. O mundo inteiro está correndo atrás de renováveis agora. Tem toda uma questão geopolítica aí envolvida; não é só dizer que teremos uma infraestrutura renovável e pronto”.
O primeiro caminho é visto como mais fácil e rápido por setores como cerâmica, cimento e siderurgia, que têm maior dificuldade em eletrificar suas operações.
Mais de 80% do gás produzido hoje no país está associado à extração de petróleo, em grande parte pela Petrobras. Segundo o Ministério de Minas e Energia, o Brasil produziu 121,45 milhões de m3 (metros cúbicos) por dia de gás em 2022. Desse total, metade foi reinjetada nos poços, o que levou a novo atrito entre o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e a direção da estatal de petróleo.
Como o aumento da oferta de gás a menores preços é uma das suas bandeiras, Silveira cobra da Petrobras que a empresa reinjete menor quantidade de gás natural. A estatal, por sua vez, diz que a reinjeção é um processo natural e que não há sobra de gás no país.
A menor reinjeção é uma das principais medidas defendidas pela Abrace, entidade que representa os grandes consumidores industriais de energia do país, para ampliação do mercado.
Em um documento elaborado no ano passado, a associação diz que o limite técnico de reinjeção de gás é de 30%, bem menor do que os 50% hoje reinjetados pela indústria local. A Abrace credita a maior reinjeção a incertezas de mercado, o que tornaria o aumento da quantidade de gás desvantajoso para o produtor.
“A gente tem um potencial no pré-sal muito significativo para aumentar a produção de gás, se houver demanda. É por isso que nós defendemos que o governo ajude a ser um matchmaker (casamenteiro, em inglês) deste gás que está no fundo do poço com o consumidor. O governo pode ajudar a criar uma convergência entre oferta e demanda”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace.
O MME diz que o setor de petróleo e gás natural receberá R$ 335 bilhões em investimentos com o Novo PAC, incluindo recursos para a ampliação do escoamento via gasodutos, reduzindo a reinjeção para além do tecnicamente necessário.
Mauricio Tolmasquim, diretor de transição energética e sustentabilidade da Petrobras, também defende o papel do gás natural como elemento de transição. Como ações da petroleira para aumento da oferta no país, ele cita a finalização do projeto Rota 3, gasoduto de escoamento previsto para este ano, e o desenvolvimento do BM-C-33, na Bacia de Campos o projeto, feito junto com Equinor e Repol, tem início de operações previsto para 2028. Já o SEAP, campo de gás em desenvolvimento em Sergipe, deve ficar pronto em 2029.
Os três projetos, segundo Tolmasquim, têm potencial de acrescentar 50 milhões de m3 por dia à malha brasileira (70% da demanda atual), mas ele aponta ser improvável que o aumento líquido seja desse tamanho, já que outros campos deverão produzir menos gás até esse período.
“[Isso vai] eventualmente diminuir um pouco a importação, mas o Brasil ainda vai continuar importando mesmo depois disso. Não dá para falar que a gente vai estar nadando em gás”, afirma Tolmasquim. Ele também alerta para a possibilidade de o combustível ficar mais caro se a obrigação de misturar biometano no gás natural for aprovada no Congresso.
Segundo a Abrace, hoje seriam necessários cerca de 40 milhões m³ por dia dia de gás natural para substituir o atual consumo de carvão mineral pela indústria. A conta não considera a quantidade para substituir o óleo.
Além do debate sobre seu uso na redução de emissões das indústrias, há discussões sobre a geração de energia elétrica em usinas térmicas movidas a gás.
Como o sistema elétrico brasileiro tem hoje uma grande porcentagem de geração solar e eólica, fontes intermitentes, que não garantem geração contínua, é preciso contar com usinas que possam ser ligadas sempre que necessário para garantir o atendimento da demanda. Termelétricas têm essa flexibilidade, e, entre elas, as que usam gás como fonte de energia são menos poluidoras que as que usam carvão.
“A solução definitiva seria o desenvolvimento de uma forma de armazenamento, não precisa ser bateria, que seja viável economicamente, mas por enquanto isso ainda não é viável em larga escala”, diz Tolmasquim.
Já Pedrosa, que representa a grande indústria, discorda e aponta que uma eventual expansão do mercado de gás deve focar apenas a descarbonização da indústria.
O que nenhum deles sabe dizer é quando exatamente acabará o período dos gás natural na transição.
“Os investimentos vão sendo feitos, as tecnologias vão avançando e nós vamos migrar para o hidrogênio lá na frente. Mas nós temos muita riqueza para aproveitar do nosso gás nesse período e entregando para o planeta a redução de metade das emissões num país que já é campeão de emissões”, afirma Pedrosa.
PEDRO LOVISI / Folhapress