Rio elimina concorrente de licitação sobre apostas por falta de zero após a vírgula

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O governo do Rio de Janeiro desclassificou uma empresa que propôs mais recursos ao estado nas operações financeiras de apostas esportivas online por um motivo peculiar: a ausência de um zero depois da vírgula.

Havia apenas dois concorrentes no certame. Assim, a exigência eliminou um deles e entregou o serviço milionário para uma empresa com apenas três anos de existência, histórico de suspeitas em outra concorrência no Paraná e laços políticos pouco transparentes.

A vitoriosa, chamada Pixs Cobrança e Serviços em Tecnologia, tem como diretora uma pessoa que figura na direção ou administração de dez empresas ligadas ao advogado Willer Tomaz, que representa vários políticos do centrão.

O escritório do qual ele é sócio, com o advogado Eugênio Aragão, ainda defende o próprio governador do Rio, Cláudio Castro (PL).

A Loterj (Loteria do Rio de Janeiro) criou no ano passado um processo de credenciamento de empresas de apostas esportivas, as chamadas Bets, para operarem legalmente no Rio. Como a Folha de S.Paulo revelou, o edital permitiu que as apostas ocorram em todo território, o que desafia a legislação vigente.

Quatro casas de apostas já operam legalmente dessa forma, a partir do credenciamento na Loterj -o processo federal ainda não foi finalizado.

Mas antes da escolha das casas de apostas, o órgão fez uma licitação, iniciada em dezembro de 2022, para que uma única empresa operasse o meio de pagamento de todas as apostas e pagamento de prêmios.

A empresa de meio de pagamento fica com um percentual das apostas, e, desses valores, repassa ao governo do estado uma parte. Quem apresentasse o maior percentual de repasse para o governo venceria.

Na abertura das propostas, a empresa chamada Idea Maker, que há mais de dez anos atua no ramo, apresentou 26%. A Pixs, 20%.

A comissão de licitação da Loterj, no entanto, desclassificou a Idea Maker sob o argumento de que a proposta tinha só dois zeros depois da vírgula, e não três.

A empresa recorreu registrando que sua proposta, mais vantajosa para o estado, “foi desclassificada do certame única e exclusivamente porque o valor indicado em sua proposta indicava como percentual 26,00% e não 26,000%”.

O edital previa que a proposta tivesse três zeros depois da vírgula, mas a nova lei de licitações, de 2021, preconiza que o “desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação do licitante ou a compreensão do conteúdo de sua proposta não importará seu afastamento da licitação ou a invalidação do processo”.

A reportagem identificou ao menos quatro ações no Tribunal de Contas da União cujo entendimento é o que de alegações de fundo puramente formal não devem prosperar.

Após a desclassificação da única concorrente, a Loterj acordou com a Pixs um valor superior à proposta da Idea Maker, de 26,455%, mas não explicou as circunstâncias que levaram a esse acerto.

Em nota, a Loterj afirmou que “o edital foi validado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e contemplou a participação de empresas de pagamento que atuam de acordo com as normas do Banco Central do Brasil”.

Os responsáveis pela Idea Maker foram procurados e preferiram não se manifestar. O governo do Rio também foi procurado e não se manifestou.

Segundo o advogado Fernando Zardo, especialista em licitações e doutorando em direito administrativo pela USP, o excesso de formalismos é algo a ser combatido nas licitações. “O objetivo da licitação é obter a melhor vantagem, mas também a igualdade entre os concorrentes. Nesse caso, parece que não houve”, diz.

Quando a Pixs foi escolhida pela Loterj, sua sede formal ainda era no Paraná, tendo como donos os sócios de uma empresa chamada Pay Brokers. Essa empresa já havia vencido uma seleção para fazer o mesmo serviço na Loteria do Paraná, em um processo cercado de suspeitas, conforme revelou a Agência Pública em agosto de 2023.

Entre os sócios da Pay Brokers está Henrique Oliveira Moreira, que trabalhou no governo Ratinho Jr. (PSD) durante a produção do edital. Ele é casado com a filha do presidente do TCE (Tribunal de Contas do Estado) do Paraná, e a mãe de sua mulher também trabalha no governo. O TCE chegou a suspender o processo, mas depois liberou a continuidade.

Pessoas ligadas à Pay Brokers doaram R$ 400 mil à campanha de Ratinho Jr. em 2022. Só Henrique de Oliveira Moreira e Edson Antonio Lenzi Filho, sócios do consórcio vencedor, doaram à campanha R$ 130 mil. O restante foi doado pela família do irmão de Edson Lenzi.

Após ser escolhida no Rio para fazer os meios de pagamentos, há uma mudança da Pixs para o Rio, com o mesmo CNPJ. Nos registros públicos da empresa, passam a constar o nome de Henrique Oliveira Moreira e de Lidia Maria Figueiredo Mazelli.

É Lidia Mazelli quem figura como administradora ou diretora de empresas relacionadas ao advogado Willer Tomaz, como veículos de comunicação do Maranhão, empresa de táxi aéreo, uma empresa de administração de imóveis, entre outras.

Procurado, Willer Tomaz indicou que Lidia trabalharia como uma administradora profissional, com questões burocráticas e regulatórias das empresas para as quais ela é contratada. Não seria funcionária formal.

Willer teria indicado o nome de Lidia para a Pixs, já que ele administra várias empresas. A reportagem não conseguiu falar com Lidia Mazzelli, apesar de contatos por telefones e email.

A Pay Brokers diz por nota ser a única dona da Pixs. A empresa afirma, no entanto, que Lidia Mazelli é de fato diretora da empresa e não prestaria serviços como os descritos pelo advogado.

A empresa não respondeu onde e desde quando ela trabalha. Afirmou ainda que Willer nunca representou a empresa Pixs e não possui relação com esta empresa. “[Willer] defendeu os interesses da Pay Brokers e/ou sócios em situações pontuais no passado, situações em que lhe foram outorgadas procurações específicas”, diz nota da empresa.

Willer Tomaz já atuou em ações ao lado do atual presidente da Loterj, Hazenclever Lopes Cançado, com histórico de trabalhos com políticos do PL, partido do governador Claudio Castro e também do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Willer é conhecido pela ligação com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Ele também advoga para o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e já defendeu a campanha de Lula (PT).

PAULO SALDAÑA / Folhapress

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