SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em meio à corrida pela transição energética e pela descarbonização de setores-chave da economia, fontes limpas têm voltado ao centro do debate.
É o caso da energia nuclear, que teve um grande revés à luz do acidente de 2011 em Fukushima Daiishi, no Japão, e agora vive uma espécie de “renascimento”, conforme mais países anunciam planos de extensão e construção de usinas atômicas.
Mas a matriz nuclear ainda desperta muitas dúvidas e medo entre a população. Entenda abaixo como a energia é gerada, quais são os sistemas de segurança que protegem os reatores e os países líderes em produção.
COMO É GERADA A ENERGIA NUCLEAR?
A energia nuclear é aquela derivada do núcleo de um átomo, composto por prótons e nêutrons. Quando átomos sofrem fissão (divisão em várias partes) ou fusão (junção de núcleos), ocorre a liberação de uma grande quantidade de energia.
Hoje, o único método usado é a fissão, mas pesquisadores de todo o mundo estudam como viabilizar a fusão atômica para a geração de eletricidade.
Para que a fissão aconteça, é preciso “bombardear” o núcleo do átomo muito rígido e estável com um nêutron acelerado, que vai romper com o equilíbrio daquela estrutura. Depois desse choque, o núcleo se divide em dois menores e gera um excedente de nêutrons, que vão atingir outros átomos nos arredores. Tem-se, assim, uma reação em cadeia, que ocorre em uma fração de segundo. Cada vez que essa reação acontece, há a liberação de uma grande quantidade de energia térmica e radiação, muito nociva à saúde.
Na maioria das usinas, o átomo é o do urânio, um metal que pode ser encontrado em rochas de todo o mundo. Ele existe sob várias formas, ou “isótopos”, que é quando um mesmo elemento apresenta massas e propriedades físicas diferentes, mas as mesmas propriedades químicas. O urânio encontrado na natureza é uma composição de seus isótopos.
Os dois principais são o urânio-238 e o urânio-235. O primeiro é o mais abundante, mas não é “físsil”, ou seja, capaz de gerar a reação em cadeia do processo de fissão. O segundo é o contrário: ele representa menos de 1% de todo o urânio existente, mas é físsil. Para vencer esse paradoxo, o urânio-238 passa por um processo chamado de “enriquecimento”, em que as concentrações de urânio-235 são aumentadas para um intervalo entre 3,5% e 5%.
“Na bomba atômica, essa concentração é de 80% a 90%, para você ver como uma coisa não tem nada a ver com a outra. São indústrias diferentes, mundialmente reguladas”, afirma Felipe Gonçalves, superintendente de pesquisa da FGV Energia.
“Se uma usina de produção de energia nuclear se torna capaz de enriquecer esse urânio a 90%, ela rapidamente vai receber uma visita da Otan, da ONU, de todas as instâncias competentes que têm tratados internacionais sobre o uso de bombas atômicas.”
Ainda assim, uma concentração de 5% de urânio-235 é letal para seres humanos o que implica um rigor técnico altíssimo. Depois de enriquecido, o urânio é colocado em pastilhas de 1 cm de diâmetro, empilhadas dentro de uma vareta de até cinco metros de altura feita de uma liga metálica de zircônio, a “zircalloy”. O conjunto dessas varetas é chamado de elemento combustível e dura três ciclos (aproximadamente três anos), até ser descartado como lixo radioativo.
O elemento combustível é colocado dentro de um grande vaso com paredes espessas de aço, chamado de “vaso de pressão do reator”. Também são inseridas barras de controle, que moderam a velocidade da fissão nuclear e possibilitam que a reação não aconteça de forma desordenada. Essas barras são feitas de aço-boro, cádmio ou háfnio, materiais que absorvem nêutrons sem sofrer fissão, e podem ser usadas para frear a reação em cadeia por completo, se necessário.
O reator é irrigado por circuitos de água. Quando a fissão acontece, o calor aquece a água que circula no circuito primário, mantida sob extrema pressão para não evaporar. Ela é usada para aquecer outra corrente por meio do calor gerado pela fissão.
A água dessa segunda corrente vira vapor e ativa uma turbina, gerando energia mecânica e, posteriormente, energia elétrica. O vapor, em seguida, é condensado, e a água líquida volta para o início do circuito para refrigerar todo o sistema, impedindo o aquecimento.
Não há emissão de gases de efeito estufa em nenhum momento do processo exceto nos maquinários usados para a mineração do urânio. E, para se ter ideia do potencial de geração de energia, apenas duas pastilhas de urânio são o suficiente para abastecer uma casa por um mês (152,2 kWh, em média).
Já um quilo, de acordo com a IAEA, é capaz de gerar 235.000 kWh, média de energia consumida por uma pessoa do nascimento até a morte, considerando a expectativa de vida de 72,6 anos. Para gerar essa mesma quantia, é preciso de quase 88 toneladas de carvão.
A ENERGIA NUCLEAR É SEGURA?
Os desastres de Tchernobil e Fukushima deixaram uma marca na opinião pública quando o assunto é energia atômica. Os dois acidentes foram classificados com nível sete na Escala Internacional de Eventos Nucleares, o pior.
Mas, para pesquisadores, são ocorrências raras ante a quantidade de usinas em atividade e dos 70 anos de uso comercial. “A mineração apresenta um risco maior do que a geração de energia elétrica nuclear”, afirma Felipe Gonçalves, da FGV Energia.
Números associados à letalidade dessa matriz também estão entre os mais baixos, com 0,03 morte por terawatt-hora (TWh) produzida só acima da solar (0,02) e a uma grande distância do carvão (24,60) e do petróleo (18,4).
Os acidentes, ainda assim, demonstraram lacunas de segurança, que forçaram um aprimoramento das tecnologias de prevenção e contenção de acidentes.
De acordo com Gonçalves, as usinas, depois de Fukushima, foram equipadas com mecanismos de segurança ainda mais robustos, a incluir uma série de camadas protetoras entre o reator e o restante do parque atômico. Elas ainda trabalham com reatores “passivos” ou seja, que não precisam de acionamento ou controle humano, o que faz com que o sistema se isole automaticamente em caso de alguma atividade anormal.
Esse sistema de segurança tem nome: “defesa em profundidade”. É como uma cebola, em que diversas camadas de segurança rodeiam o reator e cada uma delas opera de forma independente para garantir que, caso uma ou mais barreiras falhem, o público e o meio ambiente continuam protegidos.
“Em outras palavras, a segurança não depende exclusivamente de nenhuma camada, por mais robusta que seja”, diz a AIEA, em postagem institucional.
Além da proteção do urânio pelas varetas de zircalloy e da inserção das barras metálicas que param a reação em cadeia da fissão, são três barreiras físicas que impedem que o material radioativo vaze do reator para o restante da usina.
A primeira é o vaso de pressão do reator, que abriga e reveste matriz do combustível. No caso de Angra 1, as paredes de aço têm 33 cm de espessura, e o vaso é montado sobre uma estrutura de concreto de 5 metros de espessura.
Em volta dele, há uma grande carcaça de aço que mantêm os gases ou vapores possíveis de serem liberados durante a operação do reator. Em Angra 1, esse envoltório, chamado de “contenção”, tem 3,8 cm de espessura, e é o limite do sistema de controle do reator.
Depois da contenção, existe um último envoltório feito de concreto e aço, chamado de “edifício do reator”. Em Angra 1, tem cerca de 1 metro de espessura. Além de evitar o escape da radioatividade caso as outras barreiras falhem, também protege o reator contra impactos externos, como um acidente de avião ou um maremoto como o de Fukushima, por exemplo.
Fora do reator, a usina também conta com sistemas de resfriamento rápido, que removem o calor do núcleo da fissão e impedem incêndios. Os funcionários ainda são treinados para atuar com protocolos de ação para cada evento do mais provável ao mais improvável.
Há ainda a gestão de resíduos radioativos, regulada por órgãos governamentais e internacionais.
Assim que o elemento combustível finaliza seu ciclo de uso, ele é encaminhado para a etapa de pré-tratamento, que prepara o resíduo para o processamento correto. Nessa etapa, ele passa por triagem e segregação de itens contaminados dos não contaminados, além de ser triturado para reduzir o volume de resíduos, e, por consequência, o custo do descarte.
Depois, ele passa por um tratamento para reduzir ainda mais de volume. Partes não-radioativas são incineradas, outras evaporam, e, muitas vezes, o resíduo tem a composição alterada para ser reaproveitado para outros fins.
A terceira etapa, o condicionamento, armazena o restante dos resíduos de forma segura para facilitar o transporte e prevenir vazamentos. Na maior parte das vezes, são encapsulados ou solidificados em cimento, betume ou vidro, ou embalados em recipientes especiais, como piscinas cercadas por aço, chumbo e concreto. Eles ficam confinados em áreas isoladas por longos períodos de tempo, de 50 a 300 anos.
COMO É O MERCADO GLOBAL DE ENERGIA NUCLEAR?
Atualmente, os Estados Unidos lideram em número de reatores ativos, com 92, de acordo com a World Nuclear Association. A França vem em seguida, com 56 reatores responsáveis por 70% de toda a eletricidade do país.
A China, hoje líder no “renascimento” das usinas com 27 em construção, completa a tríade de países com mais reatores, com 55 já operantes e planos para outros 41.
Países com mais reatores
Em 2022
EUA – 92
França – 56
China – 55
Rússia – 37
Coreia do Sul – 24
Índia – 19
Canadá – 17
Ucrânia – 15
Reino Unido – 11
Japão – 10
Fonte: Agência Internacional de Energia
Já o Brasil conta com Angra 1 e Angra 2, que, somadas, produzem 2 GW de energia por ano o suficiente para abastecer toda a iluminação pública do país. Na matriz brasileira, porém, a energia nuclear representa apenas 1,5% do total, segundo dados da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
Angra 3 está 62% concluída, mas as obras seguem paradas desde 2015 devido à revisão do financiamento. A terceira unidade da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto terá potência de 1,4 GW, capaz de atender a 4,5 milhões de pessoas. A estimativa é que, com a nova usina, a fonte nuclear passe a ser 3% da matriz energética do país, segundo a Eletronuclear, controlada pela ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional).
Em 2022, planos para a usina foram retomados, e a licitação para contratação da empresa que vai finalizar a construção está prevista para o primeiro semestre deste ano.
O setor espera que, com o governo Lula 3, os trabalhos ganhem celeridade graças ao histórico de Lula 2: em 2009, o presidente retomou a construção da usina, parada havia 23 anos.
Estudos de viabilidade técnica, econômica e socioambiental da planta atômica foram inclusos no novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), e o PNE (Plano Nacional de Energia) ainda prevê a construção de até oito novas instalações até 2050.. A aposta é pela diversificação da matriz energética: o Brasil, além de rico em fontes renováveis, também tem a oitava maior reserva de urânio do mundo, com cerca de 280 mil toneladas.
Em alguns países, porém, o dito renascimento atômico não é bem quisto. É o caso da Alemanha, que pôs fim à era nuclear e fechou as últimas três usinas no ano passado. A decisão de descomissionar as centrais de Emsland, Isar 2 e Neckarwestheim veio após o desastre de 2011 em Fukushima, e o prazo limite era 2022. O temor de insegurança energética em meio à guerra na Ucrânia, porém, forçou o adiamento por três meses e meio.
Mas a “morte” atômica esteve longe de ser consensual.
Quem quis o encerramento das usinas apontou riscos de novos acidentes e a gestão de resíduos radioativos. Os contrários ao fechamento argumentaram que as energias eólica e solar não são confiáveis o bastante para substituírem por completo as fontes fósseis, já que dependem das condições climáticas. A produção nuclear é de funcionamento ininterrupto, ou seja, não depende do clima externo e opera de forma contínua.
Pesquisas já mostram que os alemães apoiam a energia atômica, mas o governo não mudou de posição”, disse Rafael Grossi, da IAEA. Entre a população, 67% querem que as usinas voltem a funcionar, segundo pesquisa do instituto alemão Forsa.
Mas ainda falta verba. “Hoje, é preciso o Estado. Não é qualquer um que pode fazer investir R$ 20 bilhões”, disse.
TAMARA NASSIF / Folhapress