SÃO SEBASTIÃO DO UATUMÃ, AM (FOLHAPRESS) – O barulho de uma motosserra perturba os sons da floresta no meio da amazônia. Um estalo sucede, acompanhado do ruído de deslocamento de folhas, como se algo empurrasse a copa da vegetação. Uma árvore acaba de cair na RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) do Uatumã, no Amazonas.
Pode parecer mais um caso de desmatamento criminoso, mas não é. Na reserva, que emprega manejo florestal de baixo impacto, o corte controlado envolve a comunidade e, pelas boas práticas, recebeu certificação do FSC (Forest Stewardship Council).
A reportagem acompanhou, em 2023, a derrubada de um louro-preto. Era um dos dois indivíduos dessa espécie marcados para retirada na unidade de exploração madeireira em uso pela comunidade local.
Logo após a queda, uma revoada de insetos se espalha pelo local onde ficava o louro-preto –do qual só resta, então, a base. Na área, foram mapeadas 97 árvores de 19 espécies para derrubada.
Mais de 30 já foram abaixo no bloco da reserva em que há exploração madeireira, com cerca de 70 hectares até o momento. Entre as espécies, logicamente, algumas são mais cobiçadas pelo mercado, contam os comunitários responsáveis pelos trabalhos, como a massaranduba e o angelim.
O trabalho no Uatumã, apesar do caráter comercial, é considerado sustentável por ser de pequeníssima escala e comunitário. A ideia ali, ecoando a classificação de RDS do local, é conseguir explorar os recursos naturais –de acordo com o plano de manejo da área– para garantir a vida das populações do local sem causar danos estruturais à floresta.
Um dos pressupostos é que uma árvore só pode ser derrubada na área após haver um comprador dos metros cúbicos daquela madeira. Somente a partir do momento em que um contrato está assinado os habitantes do Uatumã vão para dentro da floresta e levam a árvore ao chão.
Após o corte, é ali que ela permanece por até semanas, em uma espécie de rescaldo pós-derrubada. A técnica evita o risco de rachaduras na madeira, que podem acontecer se ela é processada de imediato.
Se em outras atividades madeireiras maiores se espera ver maquinário pesado, no Uatumã, além de algumas máquinas de serraria, há dois tratores de pequeno porte. O trabalho é essencialmente manual, conta Gracilazo Rodrigues Miranda, um dos comunitários envolvidos no manejo florestal.
Criado no Uatumã, ele passou a maior parte de sua vida ali, com um intervalo de tempo em Roraima, também para trabalho no setor madeireiro. Seu pai era guaranazeiro, mas acabou migrando para as atividades com madeira.
“Não tem como um cliente chegar aqui e falar: ‘Rapaz, estou precisando hoje de 20 metros [cúbicos] de madeira serrada'”, exemplifica Miranda.
“A gente não derruba e fica esperando [alguém] pedir”, resume Elizangela Cavalcante, também participante do manejo florestal e esposa de Miranda.
Outra preocupação no processo são as árvores em volta daquela que irá ao chão. Para evitar derrubadas por um “empurrão” desastroso, o melhor ângulo é estudado antes do corte.
Na derrubada acompanhada pela reportagem, dependendo de como o louro-preto caísse, havia o risco de outra grande árvore próxima ser atingida. O temor, porém, foi descartado minutos depois, quando foi medido o tamanho da clareira aberta –outra prática necessária no processo, para computar o dano na região.
O cuidado prévio se estende ainda aos ninhos de animais –na região, há relato de avistamento de gavião-real, por exemplo– ou locais em que macacos costumam ficar. Se identificados, a árvore não é derrubada.
“Nós fazemos parte desse trabalho com muito orgulho. É muito gostoso dizer ‘é nosso plano de manejo’. É nosso”, afirma Cavalcante.
“Fazer parte do plano de manejo eu não vejo como algo só para melhorar a geração de renda. Eu vejo como nós da comunidade entrarmos na floresta e respeitá-la. Se a gente quisesse só ganhar dinheiro, já teria explorado desordenadamente. Nós que sabemos o valor da floresta em pé”, completa.
Para ela, não depender de empresas é outro diferencial do plano. “Não vem empresa de fora dizer o que pode ou não pode, fazer o que bem quiser e depois deixar a gente aí sem floresta. Sem floresta, eu fico sem água, eu fico sem animais, eu fico sem alimento. Por isso, abraçamos a causa do plano de manejo.”
Se a queda de uma árvore leva segundos, o processo até esse momento não é nada simples. Começando pelo caminho até o bloco da reserva. O deslocamento, como de costume na amazônia, é por rio. Primeiro por braços maiores e, em seguida, com uso de rabetas –barcos menores a motor– para conseguir navegar pelos igarapés, que são canais de água menores em meio à floresta.
A dificuldade de acesso se soma à limitação climática e de tempo: de janeiro a junho, se evita a exploração, por causa da época chuvosa na floresta. Com tudo isso, quando vão para a região retirar madeira, os habitantes do Uatumã e membros da AACRDSU (Associação Agroextrativista das Comunidades da RDS do Rio Uatumã) costumam ficam por ali mesmo, às vezes por algumas semanas, em alojamentos construídos no local.
E, antes de tudo isso, ainda há o esforço de identificação, mapeamento e geolocalização das árvores com valor comercial. A segunda área de manejo do local, por exemplo, já foi totalmente inventariada.
Toda essa infraestrutura e preparação não é barata. A estruturação foi possível com recursos do Fundo Amazônia ao projeto Cidades Florestais (cerca de R$ 12 milhões destinados a diversos projetos amazônicos de manejo florestal comunitário), com início em 2018, e com apoio e assessoria técnica do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia).
Assim como para Miranda, a tradição da madeira, para Cavalcante, é algo que vem de outras gerações. Atualmente, ela e o marido têm uma movelaria que, logicamente, usa as madeiras extraídas na própria região.
“Eu via meu pai chegar com madeira lá em Itacoatiara (AM), onde a gente estudava, e eu tinha vergonha de dizer que meu pai vendia madeira”, diz Cavalcante. “Eu sei que jamais a gente vai conseguir compensar o que os nossos pais fizeram. Mas se a parte deles eles não souberam fazer, a gente está tentando acertar e fazer a nossa, com consciência.”
O trabalho feito no Uatumã por Miranda, Cavalcante e outros membros da AACRDSU ganhou reconhecimento, em 2022, com a certificação da FSC. O selo verde internacionalmente renomado estampa embalagens de produtos que o conquistaram.
“É para o mundo. Nós não vamos pegar essa floresta e botar no bolso, é para gerações futuras. Enquanto estiver bom só para alguns, para alguns poucos, e estiver ruim para muitos, esse não é o caminho”, diz Cavalcante.
“A gente sabe que é a nossa voz aqui no meio da floresta e que o mundo é vasto. Mas eu acredito que se em cada florestinha tiver alguém que pense dessa forma e que fale dessa forma, a diferença será bem grande.”
O jornalista viajou a convite da certificadora FSC Brasil.
PHILLIPPE WATANABE / Folhapress