FEIRA DE SANTANA, BA (FOLHAPRESS) – A cidade de Feira de Santana (109 km de Salvador) fervilhava naquela noite de 31 de março de 1964, horas após chegarem os primeiros informes de que um golpe de Estado estava em curso no país.
O prefeito Francisco Pinto e aliados se revezavam em reuniões na sede do paço municipal, um prédio em estilo clássico e barroco erguido na década de 1920, e na casa dele, na avenida Senhor dos Passos. Barricadas com sacos de areia foram erguidas em frente à sede da prefeitura.
Chico Pinto fora eleito em 1962 pelo centrista PSD (Partido Social Democrático), mas era conhecido por suas ideias progressistas. Tinha relação próxima com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e fazia uma gestão que antecipou políticas públicas que seriam bandeiras da esquerda num futuro próximo.
“Discutimos o que fazer e resolvemos resistir. Uma série de providências foram adotadas para resistir aos golpistas”, relembra Chico Pinto em depoimento ao livro “Autênticos do MDB”, de Ana Beatriz Nader.
Militantes do PCB mobilizavam suas bases. A eles uniu-se um grupo de jovens da AP (Ação Popular) que desembarcaram em Feira de Santana fugindo de uma já sitiada Salvador. Dentre eles estavam nomes como Duarte Pacheco Pereira, Fernando Schmidt e Haroldo Lima.
O plano era tomar o quartel da Polícia Militar, o Tiro de Guerra da cidade e iniciar a resistência em defesa do presidente João Goulart (1919-1976), o Jango. O passo seguinte seria organizar um ato público que ligasse Feira de Santana a outros centros de resistência que, eles supunham, iriam surgir pelo país.
Conforme narra o jornalista Claudio Leal no livro “Bahia 1964”, ainda inédito, Chico Pinto liderou os debates sobre uma possível resistência armada. Um coronel da reserva propôs a explosão de uma ponte na estrada para a capital, para impedir a chegada das tropas do Exército. A proposta não foi acolhida.
Também propuseram ocupar a rádio dos frades capuchinhos para discursar em defesa de Jango, mas o prefeito preferiu não melindrar os religiosos, já de olho em uma possível cobertura do comício que havia sido planejado.
“Hoje, me lembro: foi uma maluquice! Eu havia comprado bombas para destruir pontes e impedir o acesso a Feira. Seria uma loucura”, afirmou Chico Pinto, em 2007, em depoimento para o livro.
As notícias que vieram de fora arrefeceram o ímpeto do prefeito e dos seus aliados. Esperavam uma reação nos moldes da campanha de legalidade liderada pelos governadores Miguel Arraes (Pernambuco) e Leonel Brizola (Rio Grande do Sul) o que não aconteceu.
Na Bahia, o então governador Lomanto Júnior, que vinha sendo dúbio desde o início do golpe, capitulou e aderiu aos golpistas. Em Brasília, o Congresso Nacional decretou a vacância da Presidência da República, enquanto Jango rumava para o Rio Grande do Sul.
Em Feira de Santana, também houve uma avaliação de que não havia um plano concreto nem equipamentos para resistir. Não tinham armas o arsenal se reduzia a uma espingarda de caça e dois revólveres.
Assim, iniciaram a desmobilização antes mesmo do primeiro passo e traçaram planos de fuga para aqueles que tinham vindo da capital.
Nascido em 1930, filho de pai udenista e mãe getulista, Chico Pinto foi eleito vereador em Feira de Santana em 1954, mesmo ano em que ingressou na Faculdade de Direito em Salvador. Viveu entre as duas cidades, na época ligadas por uma estrada precária, com viagens que chegavam a durar quatro horas.
Formado em direito, passou a atuar como advogado em Feira de Santana em causas cíveis, criminais e trabalhistas defendeu os sindicatos de trabalhadores da construção civil e do setor fumageiro.
Em 1962, disputou a prefeitura contra um jovem político que despontava e era considerado imbatível naquela eleição: João Durval Carneiro, da UDN, que seria governador de 1983 a 1986.
Decidiu apostar em uma estratégia ousada, adotando o slogan “Francisco Pinto na prefeitura é o povo governando”. Enquanto o adversário posava para fotos com líderes conservadores, tirou um retrato com um trabalhador rural com uma foice de um lado e um operário com um martelo do outro.
“Fiz uma coisa que não sei se era muito correto. Em alguns comícios, eu dizia não quero voto da burguesia. Arriscado como o diacho, uma maluquice. Ganhei a eleição, apesar disso”, afirmou Chico Pinto em entrevista concedida a este repórter em 2007.
Em sua gestão, conclamou os moradores para que se organizassem em associações de bairros e adotou uma política pioneira para a época: o orçamento participativo, que se tornaria uma das principais bandeiras do PT nos anos 1990.
O prefeito reunia os moradores dos bairros, que escolhiam pelo voto qual era o projeto prioritário para a localidade. No dia seguinte, operários desembarcavam para iniciar obras de calçamentos de ruas, construção de escolas e implantação de rede de água.
“O povo organizado e não sendo induzido a fazer o que os outros determinam é uma beleza. A coisa mais linda que eu participei na minha vida foi aquilo ali. Isso deu uma força muito grande ao governo”, relembrou.
Na educação, acolheu a proposta de alfabetização pelo método Paulo Freire do governo Jango. Também criou uma farmácia popular, outra política que seria adotada por governos de esquerda nas décadas seguintes.
Comprou brigas com a Câmara Municipal após a maioria dos vereadores ter votado contra o orçamento participativo. Manifestantes ficaram do lado do prefeito e lideraram um protesto que resultou em um quebra-quebra no plenário da Câmara, que funcionava no prédio da prefeitura.
Quando o golpe militar eclodiu em 1964, e o plano de resistência se esvaiu ainda nos primeiros dias, a cassação e a prisão de Chico Pinto se tornaram uma questão de tempo. A pressão veio de cima e, dias depois, tropas do Exército vindas de Alagoas desembarcaram em Feira de Santana.
“Foram dias de muita tensão, havia uma grande mobilização militar na cidade. As tropas chegaram para reprimir, inclusive com torturas”, lembra o advogado Celso Daltro, que era líder estudantil e oficial de gabinete do prefeito em 1964.
Aliados do prefeito foram presos e levados para um armazém de fumo, onde foram inquiridos e parte deles torturados em uma prensa. Chico Pinto foi preso em casa, diante da mãe, e levado para um porão no quartel do Exército.
Os militares convocaram os vereadores para votar o impeachment do prefeito em uma Câmara Municipal cercada de homens armados. Ainda assim, não houve maioria de dois terços para concretizar o afastamento em duas votações.
Diante do impasse, o prefeito foi cassado por um decreto assinado apenas por três membros da mesa diretora. Em seu lugar, foi empossado o vereador Joselito Amorim, que, décadas mais tarde, admitiu que os grupos de direita da cidade receberam armas para enfrentar uma possível resistência.
“Chico Pinto foi uma das personalidades mais corajosas que eu conheci, tinha uma coragem temerária. Foi um gigante na história do Brasil”, diz o escritor e ex-deputado federal Emiliano José.
Deposto e preso, respondeu a oito processos e inquéritos policiais militares. Fez sua própria defesa e foi julgado pelo Superior Tribunal Militar, sendo absolvido por unanimidade.
Retornou à ribalta política pelo MDB, sendo eleito deputado federal em 1970 e se destacando como membro do grupo dos autênticos, o mais combativo núcleo parlamentar de oposição ao regime militar.
Em 1974, fez um histórico discurso na Câmara contra a presença no Brasil do ditador chileno Augusto Pinochet, chamando-o de assassino e fascista. Devido a essa fala, foi processado pelo governo do ditador Ernesto Geisel e condenado a seis meses de prisão pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Pela segunda vez, teve o mandato cassado.
Encerrou a vida pública em 1991, quando concluiu seu último mandato como deputado federal. Morreu em fevereiro de 2008, aos 77 anos, após enfrentar problemas renais. Seis anos depois, teve o mandato de prefeito simbolicamente devolvido pela Câmara Municipal de Feira de Santana.
JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress