Veto de Lula à memória de 1964 mantém tutela militar sobre a República, diz historiadora

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do presidente Lula (PT) de impedir que os ministérios promovam atos para marcar a efeméride dos 60 anos do golpe militar é um “desastre”, diz Heloisa Starling, historiadora e professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Como revelou a Folha de S.Paulo, o Ministério de Direitos Humanos planejava apresentar pedidos públicos de desculpas a vítimas da ditadura e realizar outras ações para lembrar a data. Os atos, porém, foram vetados por Lula para evitar atritos com os militares em meio ao avanço das investigações sobre os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.

“O presidente tem que entender que essa decisão sugere um tipo de tutela dos militares. Ele diz aos militares: ‘Não façam a ordem do dia e nós não denunciaremos vocês’. Ora, isso mantém a tutela militar sobre a República”, afirma.

Starling está lançando neste mês, de forma online, os primeiros dois capítulos do livro “A Máquina do Golpe – 1964: Como Foi Desmontada a Democracia no Brasil”. A segunda parte sai em abril e, na sequência, a terceira e última. Ainda neste semestre, segundo a editora Companhia das Letras, o livro físico chega às lojas.

A obra detalha as principais etapas do golpe, percorrendo o período que vai de 31 de março, quando as tropas do general Olympio Mourão Filho deixaram Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, a 11 de abril, data em que outro general, Castello Branco, foi eleito pelo Congresso para assumir a Presidência da República –Castello era o único candidato.

“Existem uma historiografia e uma ciência política vastas sobre a ditadura, mas poucos estudiosos se detiveram sobre o que estou chamando de ‘máquina do golpe’”, diz Starling.

O livro é dedicado ao cientista político René Dreifuss, autor de “1964: A Conquista do Estado”, primeira publicação a mostrar com fôlego a participação dos empresários na conspiração que resultou no golpe. Ele foi o orientador de Starling na dissertação de mestrado na UFMG nos anos 1980.

Na entrevista, ela comenta as ações e omissões de João Goulart, o Jango, presidente deposto; fala sobre as origens do “imaginário anticomunista”; e compara o golpe de 1964 com a tentativa de ruptura em 2023.

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PERGUNTA – Como era a crise vivida pelo Brasil em 1964?

HELOISA STARLING – Atingia todos os lados da vida brasileira. Havia uma crise econômica, com inflação alta e, às vésperas do golpe, fila para fazer compras nos supermercados. E, principalmente no Rio, muitas greves.

E também uma crise política. O país estava num momento de forte polarização, e tanto na esquerda quanto na direita havia muita gente que não via a democracia como um valor. Além disso, existia uma paralisia decisória por parte do governo, com grande rotatividade de ministros. O Jango tinha bastante dificuldade para construir coalizões, muito por conta de uma estratégia de parlamentares da extrema direita de bloquear projetos do Executivo.

Então, a combinação dessas crises, a política e a econômica, empurram o país para baixo.

P – Jango é muitas vezes descrito como herói ou como vítima. O que a sra. pensa sobre isso?

HS – Não foi nem uma coisa nem outra. Ele é um personagem muito complexo. Por um lado, Jango tem uma grande aprovação popular, e as reformas de base propostas por ele eram apoiadas pela população. O plebiscito que devolveu o Brasil ao presidencialismo [em janeiro de 1963] foi uma vitória enorme do Jango.

Há um mérito nas reformas de base que precisa ser reconhecido. Pela primeira vez na história do Brasil, um presidente apresentou um programa para enfrentar com profundidade a desigualdade estrutural e a miséria no país.

Por outro lado, Jango deixa de tomar iniciativas que poderiam impedir a destruição da democracia. Ele se via como um bom articulador, mas não agiu na hora que precisava organizar as forças políticas. Fico me perguntando: por que ele deixou o Rio em 1º de abril de 1964? Por que não chamou as principais rádios que o apoiavam para uma entrevista no Palácio das Laranjeiras, promovendo uma mobilização?

Uma hipótese é que Jango contava que o Congresso abriria um processo de impeachment. Nesse caso, ele teria tempo de negociar e tentar barrar o impeachment.

P – O que mais te surpreendeu nas pesquisas?

HS – Eu imaginava que a iniciativa do general Olympio Mourão, em Juiz de Fora, havia sido um ato tresloucado. Não foi. O general tinha criado uma espécie de Estado Maior revolucionário. Ao dar início [ao golpe, com as tropas partindo em direção ao Rio na madrugada de 31 de março], eles imaginavam um efeito dominó, que funcionou.

Também fiquei impressionada com o tamanho da intervenção preparada pelos EUA [caso houvesse resistência ao golpe]. O pesquisador Felipe Loureiro tem um livro muito bom chamado “A Aliança para o Progresso e o Governo João Goulart”, que mostra várias outras ações em andamento, além da operação Brother Sam.

P – No livro, a sra. fala sobre o “imaginário anticomunista”, que “assombrava o Brasil” naquela época e, de certa forma, voltou a assombrar nas eleições presidenciais recentes. Qual é a gênese desse imaginário na nossa história?

HS – É a insurreição de 1935 [quando o Partido Comunista tentou derrubar Getúlio Vargas]. Foi a primeira vez que os comunistas pegaram em armas para buscar viabilizar seu projeto político no Brasil. Houve ações, tiroteios, bombardeios, enfrentamentos nas ruas no Rio de Janeiro, em Recife e em Natal. A população viu esses acontecimentos, que depois foram habilmente manipulados pelo governo Vargas.

Por exemplo, os comunistas atacaram o Forte de Copacabana, isso é verdade. Mas eles não fuzilaram os soldados que estavam no forte. O governo Vargas criou o que hoje o povo fala que é uma “narrativa”, uma versão falsa. E esse imaginário anticomunista é elástico o suficiente para caber em épocas históricas diferentes.

P – Há quem trate esse episódio como um golpe militar, e outros falam em um golpe civil-militar. Qual é o termo mais preciso?

HS – O golpe é militar. Depois do livro do Dreifuss, nós, brasileiros, tivemos a dimensão da força da conspiração levada a cabo pelos empresários [para derrubar o Jango]. Essa ideia de golpe civil-militar está associada a isso, não era uma conspiração só de militares.

Além dos empresários, havia as mobilizações da classe média nas ruas. E, a partir da metade de 1963, os grandes jornais da época, como o Correio da Manhã, entraram numa campanha feroz contra o governo João Goulart.

Mas a eclosão é militar, o conjunto de ações que produziram o golpe de Estado certamente é militar. Com uma profunda sustentação civil.

P – Fala-se pouco sobre a atuação do Congresso Nacional para a efetivação do golpe, não acha?

HS – Sim. Podemos pensar no golpe em etapas. A conspiração é uma delas. A situação de instabilidade institucional para que ocorra a tomada do poder é outra etapa. E a terceira é a tomada do poder, a deposição do Jango. Quem faz isso é o Parlamento, é quando o golpe sai do Rio e vai para Brasília.

No dia 1º de abril, o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, chamou uma sessão extraordinária, que seria realizada na madrugada do dia 2. Os parlamentares à esquerda imaginavam que ele iria propor a abertura de um processo de impeachment.

Mas o Moura Andrade chegou lá e declarou vaga a Presidência da República. Por que esse é o terceiro momento do golpe? Porque o Jango está em território nacional, está voando para o Rio Grande do Sul. Tancredo Neves [líder do governo João Goulart na Câmara] saiu do sério. Ele se levantou, gritando: “canalha, canalha!”.

Moura Andrade desligou os microfones e foi ao gabinete do Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara. Foram ao Palácio do Planalto, onde Moura de Andrade empossou Mazzilli na Presidência [nove dias depois, o general Castello Branco foi eleito pelo Congresso para assumir o cargo].

P – Por que a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 não foi bem-sucedida como ocorreu com a de 1964?

HS – O 8 de janeiro não aconteceu por uma confluência de fatores importantes. Primeiro, a conjuntura internacional era outra em relação a 1964. Países como EUA, França e Alemanha disseram que se opunham [a uma ruptura]. O segundo elemento é a sociedade brasileira, que tem reagido a favor da democracia, o que é muito importante. Houve focos de reação em 1964, mas nada como vimos agora.

Um terceiro ponto é o STF, que teve um papel extraordinário na defesa da democracia no 8 de janeiro. Por fim, a imprensa assumiu um papel decisivo, reforçando a cultura democrática, ao contrário do que aconteceu 60 anos atrás.

P – Como avalia a orientação do presidente Lula para que os ministérios não promovam atos em memória dos 60 anos do golpe?

HS – Um desastre. O presidente tem que entender que essa decisão sugere um tipo de tutela dos militares. Ele diz: ‘Não façam a ordem do dia e nós não denunciaremos vocês’. Ora, isso mantém a tutela militar sobre a República. Os militares não estão em posição de igualdade com o presidente da República, o erro começa aí.

Nós estamos perdendo um grande momento. A República poderia se impor, fazendo uma boa discussão sobre o lugar das Forças Armadas, sobre a mudança do artigo 142 da Constituição, sobre o ensino nas instituições militares.

O passado tem uma função muito importante, que é fornecer repertório para que o presente possa construir projetos para o futuro. Se o presidente pretende defender a democracia –e acho que é isso que ele quer–, ele tem que olhar, sim, para 1964.

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RAIO-X | HELOISA MURGEL STARLING, 66

É historiadora, cientista política e professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autora de “Os Senhores das Gerais – os Novos Inconfidentes e o Golpe Militar de 1964” (1986) e “Ser Republicano no Brasil Colônia” (2018), entre outros. Escreveu “Brasil: uma Biografia” (2015), com Lilia Schwarcz, e organizou “Independência do Brasil – as Mulheres que Estavam Lá”, com Antonia Pellegrino.

NAIEF HADDAD / Folhapress

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