BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A Polícia Federal elenca no relatório final do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes uma série de falhas na investigação conduzida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro como causa da ausência da identificação dos mandantes ao longo de seis anos desde o crime.
A atuação da Polícia Civil é o ponto central da tese dos investigadores federais. Segundo eles, o então chefe da corporação fluminense, Rivaldo Barbosa, foi um dos arquitetos do crime ao garantir antes mesmo do assassinato que a investigação não alcançaria os reais mandantes.
Ainda segundo a PF, a equipe da Polícia Civil responsável pelo caso “não somente se absteve de promover diligências frutíferas para a investigação, mas também concorreu para a sabotagem do trabalho apuratório”. Quem chefiou a investigação no Rio foi o delegado Giniton Lages, indicado por Rivaldo.
Ambos negam envolvimento na morte da vereadora.
Rivaldo foi preso e Lages, alvo de busca e apreensão no último domingo (24), quando a PF prendeu Domingos e Chiquinho Brazão, apontados pelo ex-PM Ronnie Lessa como mandantes do crime.
Lessa confessou ser o executor do crime e fez uma delação premiada, que foi homologada neste mês pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre Moraes.
Lages apresentou seu relatório final em 7 de março de 2019. A conclusão apontava Lessa e Élcio Queiroz como os responsáveis pelo crime. Segundo a PF, o documento aponta como motivo do assassinato a repulsa do ex-PM pelos “ideais políticos representados na figura de Marielle Franco, de modo a caracterizar, assim, o denominado crime de ódio”.
O relatório não aponta quem seriam os mandantes do crime, o que passou a ser investigado em um novo inquérito em aberto até hoje.
Segundo a PF, Lessa disse em sua delação que os mandantes são os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão. Os dois, assim como Rivaldo, foram presos no domingo (24). Eles negam envolvimento no caso.
A tese sobre a participação de Lessa havia surgido no caso em 15 de outubro de 2018, quando uma denúncia anônima recebida pela Polícia Civil apontou o ex-PM como o assassino a mando do vereador Marcelo Siciliano. O documento também citava o local de onde o veículo usado no crime havia saído.
A indicação de Siciliano, tempos depois, foi investigada pela PF e considerada como uma trama para tirar o foco dos verdadeiros mandantes.
Segundo a delação de Lessa, os mandantes disseram após o crime começar a ganhar grandes proporções na mídia que Rivaldo prometeu direcionar a investigação para outro lado.
É nesse contexto que a PF cita o surgimento da denúncia anônima e a guinada da investigação de Lages para Lessa, mas sem chegar aos mandantes, apenas citando o então vereador Marcelo Siciliano.
Para alcançar esses interesses, diz a PF, a Polícia Civil do Rio perdeu as oportunidades de angariar provas no período mais importante da investigação, que é logo após o crime.
Entre as falhas, a PF cita a falta de captação e análise das imagens de câmeras em locais onde o veículo do crime passou, uso reiterado de denúncias apócrifas de conteúdo duvidoso, alegações de erros incompatíveis com a realidade, orientação espúria de testemunhas, criação de enredos sabidamente falsos, sumiço de materiais de interesse da investigação e ocultação de informações relevantes.
Sobre as imagens, a PF cita que essa falha impossibilitou a rápida descoberta da rota de fuga dos assassinos. Em um dos locais, diz a PF, a Polícia Civil chegou a ir ver as imagens, mas não as coletou e não solicitou o arquivamento.
Além disso, as imagens que foram coletadas logo no primeiro dia e mostravam o carro indo até o local do crime só foram juntadas no inquérito apos a noticia anônima que indicava Lessa como autor a mando de Siciliano.
O delegado Lages disse em depoimento que o surgimento tardio das imagens se deve a um erro de sua equipe.
A PF atrela essa suposta falha na captação e tratamento das imagens câmeras de segurança à tentativa de criar condições para a versão da denúncia anônima que apontava Siciliano como mandante.
Outro diligência necessária e que não foi feita, diz a PF, era a análise do celular de Eduardo Siqueira, conhecido como Dudu do Clone, apontado em documento do inquérito da Polícia Civil como responsável por clonar a placa do veículo utilizado no crime.
A análise não foi possível porque o celular desapareceu após supostamente ser enviado para o setor responsável por acessar os conteúdos do aparelho.
“Merece o registro de que foi o próprio delegado Lages quem assinou os dois campos destinados ao encaminhamento do aparelho, um instrumento que permitiria um duplo controle”, diz a PF.
O delegado prestou depoimento sobre o tema e disse que não foi “o responsável pela lavratura do auto de prisão em flagrante de Eduardo e, portanto, não saberia dizer o paradeiro do aparelho”.
Outra falha citada pelos investigadores é na “ausência de informações substanciais acerca da busca e apreensão realizada da empresa Martinelli Imóveis”.
A busca no endereço foi realizada após um depoimento colhido pela Polícia Civil indicar que o local seria frequentado por Marcelo Siciliano, então visto como suspeito.
A PF afirma que o dono da empresa era ligado, na verdade, a Domingos Brazão, de quem já até havia sido sócio em um posto de gasolina. Mesmo após solicitação, a PF não recebeu as informações sobre o que foi encontrado nas buscas.
No entendimento da PF, as falhas impediram algumas medidas como os depoimentos de Edmilson Macalé, que teria participado das reuniões com os mandantes ele foi morto em novembro de 2021, e de Adriano da Nóbrega, morto em fevereiro de 2020.
A PF ainda cita como consequência da demora nas diligências a impossibilidade de encontrar as munições descartadas por Macalé em um córrego. Quando a PF foi ao local, ele já havia sido desassoreado.
Os investigadores também não puderam confirmar dados sobre a arma de fogo. Eles tentaram buscar elementos no lugar indicado por Lessa como onde ele testou a arma, mas o barranco que existia no local onde poderiam estar os projéteis foi alterado pelos donos com a passar do tempo.
Para a PF, a sequência de falhas e o passar dos anos tornaram o caso Marielle em um “cold case”, ou caso frio, quando é quase impossível ainda se produzirem provas cabais sobre a autoria e motivações do crime.
A advogada de Rivaldo, Thalita Mesquita, disse no domingo (26) que ele nega qualquer envolvimento com o crime. “A defesa tem certeza da inocência dele.” Procurada novamente, não respondeu ao contato da reportagem.
A Secretaria de Estado de Polícia Civil disse por nota que delegados da corporação acompanharam a operação no domingo (24) e que instaurou inquérito para apurar a conduta de Rivaldo e Lages.
Lages disse à Folha de S.Paulo no domingo (26) que nunca recebeu orientação de Rivaldo para deixar de investigar alguém. “Sempre contei com independência e autonomia”, afirmou.
FABIO SERAPIÃO / Folhapress