SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Apesar de o golpe de 1964 ter sido realizado pela caserna com apoio de boa parcela da sociedade civil, nem todos os integrantes das Forças Armadas foram favoráveis à tomada do poder político.
Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), 6.591 militares, de generais a sargentos, foram punidos, torturados e perseguidos durante o regime autoritário por se posicionarem a favor da democracia e contra a deposição de João Goulart (PTB). Ou por discordarem das atitudes da ditadura.
Ideologicamente heterogêneos, os fardados contra a implantação do regime autoritário não eram necessariamente de esquerda. Alguns eram apenas legalistas, ou seja, defensores da Constituição de 1946 e do regime democrático existente.
“Os militares foram perseguidos de várias formas: mediante expulsão ou reforma, sendo seus integrantes instigados a solicitar passagem para a reserva ou aposentadoria; sendo processados, presos arbitrariamente e torturados; quando inocentados, não sendo reintegrados às suas corporações; se reintegrados, sofrendo discriminação no prosseguimento de suas carreiras. Por fim, alguns foram mortos”, descreve o relatório da CNV.
Nos dias que antecedem o golpe, havia diferenças de opinião entre os militares enquanto um grupo, majoritário, queria sua queda e acreditava nessa possibilidade, outras facções viam a ruptura com ceticismo, e outros ainda apoiavam as reformas de base do então mandatário.
Havia ainda os legalistas, oficiais contra a ruptura, mas que aderiram aos golpistas na última hora por medo da quebra da hierarquia.
Jango sabia dessa diversidade de perfis e tentou explorá-la para dar fôlego às suas propostas, o que muitos consideram como a atitude que enterrou as chances de completar o próprio mandato.
Um exemplo é a Revolta dos Marinheiros, em 25 de março de 1964. Dirigentes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, não reconhecida pelas autoridades militares, ignoraram as ordens do ministro da Marinha, o almirante Silvio Borges de Sousa Mota, e comemoraram o segundo aniversário da entidade, cobrando melhorias na estrutura militar e reconhecimento da organização.
Diante da insubordinação, o ministro mandou prender os líderes da associação, e os fuzileiros, em vez de cumprirem a ordem, juntaram-se aos revoltosos. O Exército cercou o prédio, mas Jango interveio e proibiu a invasão do sindicato. Em 27 de março, o presidente anistiou os marinheiros, e o almirante Mota deixou o governo, aumentando as tensões com a cúpula militar.
Dias depois, Jango foi a uma reunião no Automóvel Clube do Rio de Janeiro por ocasião dos 40 anos da Associação dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar. Fez discurso inflamado e pediu que os praças e suboficiais se unissem cada vez mais, em um movimento visto como quebra da hierarquia.
No dia seguinte, o golpe foi desencadeado pelo general Olympio Mourão Filho, com a movimentação de tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio.
Consumado o golpe, uma das primeiras atitudes do grupo que assumiu o poder foi prender e expurgar os fardados que resistiram ao novo status quo. Muitos deles foram enviados ao navio-prisão Raul Soares, atracado em Santos (SP).
A embarcação, além de ter abrigado os considerados “subversivos”, serviu para humilhar e torturar aqueles contrários ao regime no início da ditadura. Ela foi desativada em novembro de 1964, quando uma parte dos presos foi enviada a outros locais, e a outra parcela foi colocada em liberdade.
Quatro anos depois, o AI-5 (Ato Institucional de número 5), assinado pelo presidente Costa e Silva, deu mais instrumentos para a intensificação da repressão, inclusive dos militares discordantes do governo.
Há vários exemplos de fardados de alta patente que sofreram por conta de seu posicionamento em defesa do regime democrático.
Um deles é o marechal Henrique Teixeira Lott, que havia sido candidato à Presidência em 1960, derrotado por Jânio Quadros (UDN). Mesmo em 1961, falou abertamente contra a tentativa de impedir a posse de Jango no Palácio do Planalto e chegou a ser preso.
Após o golpe, Lott foi impedido de lançar candidatura ao Governo do Rio de Janeiro e, quando morreu, em 1984, foi enterrado sem nenhuma honraria militar, algo incomum para um general de cinco estrelas.
Outro que sofreu as consequências de se opor à deposição de Jango foi o brigadeiro Rui Moreira Lima. Herói da Segunda Guerra Mundial, ele fez um voo rasante sobre as tropas de Mourão Filho e pediu ao então presidente uma ordem para “bombardear as posições”. Goulart não autorizou.
Após a consumação do regime militar, Moreira Lima foi preso três vezes, sequestrado e aposentado compulsoriamente, além de proibido de voar por 17 anos e de ter a família perseguida. Ele morreu em 2013.
Oficiais e praças ainda foram impedidos de atuar em seus postos nos órgãos de segurança e não podiam ter trabalho remunerado na iniciativa pública ou privada, com suas esposas recebendo pensões os chamados “mortos-vivos”, já que eram tratados como se tivessem falecido.
Para o professor de teoria política da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Paulo Ribeiro da Cunha, os militares, considerando os pertencentes às Forças Armadas e às polícias, foram a categoria social comparativamente mais atingida pela repressão.
Ele ressalta ainda a falta de aprofundamento no assunto. “Mesmo a CNV estudou pouco esse tema, há outros casos, como os cerca de mil militares presos e perseguidos nos anos 1950 por atuar em defesa da campanha ‘Petróleo É Nosso’ e da proteção à Amazônia.”
O pesquisador aponta o período de 1945 e 1964 como de grande discussão política, inclusive com os militares, relembrando a existência de candidaturas militares tanto nacionalmente quanto em escala local.
Rememorando a frase “O Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”, dita pelo general Cordeiro de Farias (1901-1931), Cunha afirma que Jango tinha à disposição quantidade relevante de pessoal e instrumentos para uma resistência, mas não a quis, o que levou a uma desmobilização em cadeia.
“Havia militares associados ao projeto de nação em discussão: nacionalismo, democracia, a visão de país inserido em um contexto internacional. Existiam também legalistas em defesa da Constituição, não aficionados pela figura de Goulart, mas em defesa da democracia.”
Sobre os militares torturados, Cunha diz que muitos grupos eram contrários à prática. Não foram ouvidos, porém: durante o período autoritário, a relação de camaradagem foi rompida pela ideia do anticomunismo reproduzida pelo grupo que comandava o governo. “Vários oficiais foram barbaramente torturados, como coronel Silvestre [PM de São Paulo], Jefferson Cardim [Exército], brigadeiro Rui Moreira Lima, marechal Lott, desrespeitando normas castrenses.”
As anistias entre os fardados foram “socialmente limitadas e ideologicamente norteadas”, lembra o professor. Segundo ele, enquanto militares vistos como de esquerda eram punidos, expulsos e não voltavam às Forças, os militares considerados de direita reprimidos eram reintegrados.
O assunto já foi tema de documentários, como “Militares da Democracia: os Militares que Disseram Não”, dirigido por Silvio Tendler e disponível gratuitamente no YouTube.
O diretor ressalta a ausência de uma justiça de transição no país, o que dificulta a compreensão em relação ao que houve com os principais focos de resistência entre os militares e que fim essas vítimas do regime tiveram.
“O Brasil não julgou ninguém, deu o episódio como página virada, o que prejudica o entendimento de que a memória serve para não repetirmos o passado”, diz Tendler.
MATHEUS TUPINA / Folhapress