BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A fatia do Orçamento federal destinada às ações e políticas públicas relacionadas à promoção da anistia e da memória sobre a ditadura militar (1964-1985) caiu 96% em uma década.
O montante chegou aos menores patamares na gestão de Jair Bolsonaro (PL) e voltou a subir no governo Lula (PT), mas ainda permanece muito aquém da verba reservada na gestão Dilma Rousseff (PT).
Em 2024, ano da efeméride de 60 anos do golpe, o orçamento é de cerca de R$ 1,5 milhão. Desse recurso, cerca de R$ 500 mil estão previstos para o funcionamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão que nem sequer foi recriado por Lula, apesar de promessa do mandatário.
Já a verba reservada em 2014 para ações sobre a ditadura superava R$ 36,2 milhões, considerando valores corrigidos pela inflação (a cifra nominal disponível há uma década era de R$ 21,3 milhões).
Naquele ano, o orçamento se destinava principalmente à construção do memorial da anistia, obra abandonada pela gestão Bolsonaro, e também para as ações da Comissão Nacional da Verdade, que entregou seu relatório final em dezembro daquele ano.
Em 2007, no segundo mandato de Lula, o governo passou a rediscutir as políticas de reparação, que até então eram compreendidas apenas como econômicas. Começou a elaborar uma série de medidas para conscientizar as pessoas sobre o período ditatorial e promover a memória.
A principal dessas foi a Caravana da Anistia, quando a comissão viajava para os lugares para conceder as anistias e indenizações, fazia eventos e, principalmente, realizava um pedido de desculpas público, em nome do Estado.
Essa medida foi a principal forma simbólica de reparação e, como mostrou a Folha, o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania queria retomá-la neste ano, mas foi interrompido a pedido de Lula.
O presidente vetou, em 2024, atos em memória do golpe de 1964 para não se indispor com as Forças Armadas. O governo planejava desde eventos até mobilizar ministérios por pedido de desculpas públicas às vítimas da ditadura.
A maior verba para ações desse tipo foi reservada em 2013, cerca de R$ 49,7 milhões, considerando a inflação acumulada desde então. Os recursos para ações ligadas à ditadura subiram sob Dilma, que foi presa e torturada na década de 1970 e instalou a Comissão da Verdade em 2012.
Os cálculos sobre os recursos reservados a cada ano consideram ações do Orçamento ligadas à memória da ditadura e não incluem as indenizações a anistiados políticos, que superam R$ 1,3 bilhão anualmente.
Os trabalhos de políticas públicas pela memória eram concentrados na Comissão da Anistia, então no Ministério da Justiça, e chegaram ao seu ápice durante o governo Dilma 2. Foram feitos livros, palestras, filmes, festivais de cinema, além de clínicas de atendimentos psicológicos a vítimas. Brasília chegou a sediar um encontro internacional de comissões de reparação.
Com o impeachment da petista e o início do governo Michel Temer, metade da Comissão da Anistia pediu demissão. A outra seguiu, por entender a necessidade de uma continuidade institucional no colegiado. As políticas, contudo, foram sendo descontinuadas.
Na gestão do emedebista, a verba do setor foi cortada. Em 2018, foram empenhados menos de R$ 300 mil, praticamente apenas para atividades da Comissão de Anistia.
Admirador da ditadura, Bolsonaro retirou do Ministério da Justiça as ações ligadas à anistia e encaminhou para a pasta da Mulher, Família e dos Direitos Humanos –comandada naquela época pela hoje senadora Damares Alves (Republicanos). Nesse período, o orçamento para o setor se manteve em patamar parecido ao de Temer.
Em 2023, primeiro ano da gestão Lula 3, o orçamento aumentou para cerca de R$ 500 mil para ações ligadas à ditadura, verba que subiu para cerca de R$ 1,5 milhão em 2024, aniversário de 60 anos do golpe.
Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, responsável por executar as políticas de reparação sobre o regime militar, disse que o orçamento atual da pasta está vinculado às ações da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade.
A assessoria foi criada no começo da terceira gestão de Lula. O ministério comandado por Silvio Almeida também gere a Comissão de Anistia, que julga pedidos de concessão de indenização a vítimas da ditadura.
O ministério não detalhou como pretende utilizar a verba reservada neste ano à memória da ditadura. Também não disse o que será feito com o recurso destinado para a comissão de mortos e desaparecidos, que segue só no papel apesar de pareceres favoráveis de diversos ministérios pela recriação.
A pasta afirmou apenas que o recurso previsto a esta comissão em 2023 foi transferido para a retomada da análise de remanescentes ósseos encontrados na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, em São Paulo, entre outras ações.
A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) tem trabalhado na análise da ossada. Segundo pesquisadores, os recursos servem para a manutenção do laboratório. O trabalho de identificação está paralisado desde 2020 e ainda depende da retomada de convênio com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Desde 2015, com a aprovação do teto de gastos, agora substituído pelo novo arcabouço fiscal, o governo tem margem reduzida para aumentar gastos discricionários, que são aqueles valores que incluem custeio e investimentos públicos e podem bancar, por exemplo, ações de memória sobre a ditadura.
Além disso, as emendas parlamentares tem drenado o orçamento dos ministérios –no caso da pasta comanda por Silvio Almeida, cerca de 30% da verba está reservada para as indicações de deputados e senadores.
No fim de fevereiro, o presidente Lula disse não querer ficar remoendo as consequência do golpe de 1964 porque isso “faz parte do passado” e que quer “tocar o país para frente”.
AÇÕES SOBRE A DITADURA (1964-1985)
Verba despenca em uma década; Lula vetou atos sobre 60 anos do golpe
Orçamento em 2014: R$ 36,2 milhões*
Inclui atividades da Comissão Nacional da Verdade
Governo previa recursos para memorial da anistia, obra cancelada sob Bolsonaro
Orçamento em 2024: R$ 1,5 milhão
Verba caiu para menos de R$ 300 mil anuais sob Bolsonaro e voltou a crescer na gestão Lula, ainda abaixo do orçamento de Dilma
Cerca de R$ 500 mil estão reservados para Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que não foi recriada por Lula
(*) Valor corrigido pela inflação
Fonte: Dados do Orçamento extraídos do Siga Brasil, painel mantido pelo Senado Federal
MATEUS VARGAS E MARIANNA HOLANDA / Folhapress