SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O golpe de 1964, que completa 60 anos, envolveu uma série de movimentações diante da tensão instalada no governo de João Goulart (PTB) com as Forças Armadas, que viam na atuação do então presidente pelas reformas de base como uma escalada para uma transformação comunista do país.
O mandatário, antes ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, viu em seu governo o aprofundamento da crise econômica. Além disso, houve uma crescente participação da sociedade civil em movimentos pelo país, e o comportamento da oposição dificultava a governabilidade de Jango.
Os momentos que antecedem o golpe expõem o ápice dessa tensão, com discursos inflamados de Jango, o início de um motim militar e, diante da inflexibilidade do então presidente de aplacar a insatisfação dos fardados, a perda de adesão ao governo vigente dos que ainda restavam. Ao fim, em 2 de abril, a Presidência da República foi declarada vaga pelo Congresso Nacional.
Veja como foram as movimentações naqueles dias:
NOITE DE 30 DE MARÇO
João Goulart se reuniu no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com Tancredo Neves, então líder do governo na Câmara dos Deputados, e com Raul Ryff, secretário de Imprensa da Presidência. Ambos tentavam persuadir o mandatário, sem sucesso, da ideia de discursar para suboficiais e sargentos das Forças Armadas no salão do Automóvel Clube, na Cinelândia.
No evento, Jango reafirmou a necessidade das reformas de base. Citou as reformas agrária, tributária e eleitoral, as mesmas abordadas em comício na Central do Brasil, também no Rio, no dia 13 de março.
No Congresso Nacional já existiam movimentos pela queda de Jango. O senador Ernâni do Amaral Peixoto, ex-oficial da Marinha, sentenciou: “Jango não é mais o presidente da República”.
Avaliando a situação à distância, o Departamento de Estado dos Estados Unidos determinou a todos os consulados no Brasil que informassem diretamente a Washington “qualquer desenvolvimento significativo envolvendo resistência militar ou política de Goulart”.
MADRUGADA E MANHÃ DE 31 DE MARÇO
Pela madrugada, o general Olympio Mourão Filho, chefe do 4º Exército, acionou um levante partindo de Juiz de Fora rumo ao Rio, onde Jango estava.
Pela manhã, Mourão convocou militares e civis em pelo menos três estados do país. Os primeiros a saber do movimento foram o deputado Armando Falcão, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, além de oficiais das Forças Armadas, com o chefe do Estado-Maior do Exército, Castello Branco.
O presidente foi avisado sobre o levante por volta de 9h, mas decidiu ficar no palácio. Não passará de uma “quartelada”, disse o comandante do Exército paulista, Amaury Kruel, sobre o motim.
Assis Brasil, chefe do gabinete militar da Presidência, acionou dispositivo para frear a movimentação mineira, mobilizando dois pelotões para combater as tropas de Mourão e fechando o aeroporto de Brasília.
TARDE DE 31 DE MARÇO
Por volta do meio-dia, os EUA discutiam um possível envio de apoio às tropas rebeldes de Mourão. Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, reportou a Washington que poderia “ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra o grupo de Goulart”.
No Rio, o motim gerava uma série de repercussões. Oficiais pró-golpe da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército invadiram o prédio do Ministério da Guerra para proteger Castello Branco.
O general, que viria a se tornar presidente, deixou o local na companhia de Ernesto Geisel em carro da Polícia do Exército, em direção a um apartamento na avenida Atlântica. A Polícia Militar invadiu a Redação do jornal Diário Carioca, e agentes do Dops fecharam o sindicato dos bancários.
Em Belo Horizonte, policiais também invadiram sindicatos e jornais. Um deputado estadual do PTB, partido de Jango, foi preso. Em Juiz de Fora, todos os vereadores da sigla foram detidos.
Por volta das 17h, as tropas mineiras do levante contra Jango chegaram à divisa com o Rio. Seguindo ordens do general Mourão Filho, deveriam permanecer ali, aguardando apoio do Exército do estado. Caso contrário, avançariam sobre Guanabara. Neste mesmo momento, tropas governistas seguiam na direção de Minas Gerais para conter os rebelados.
NOITE DE 31 DE MARÇO
Nos Estados Unidos, estava em andamento a operação Brother Sam, que previa uma esquadra para dar apoio aos militares no Brasil. As embarcações incluíam um porta-aviões, um porta-helicópteros, 110 toneladas de munição e quatro petroleiros com 553 mil barris de combustível. Como a resistência dos aliados de Jango acabou se revelando inexpressiva, a ação não chegou ao litoral do país.
Enquanto isso, no Rio, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Pery Bevilacqua, entregou a Jango um documento afirmando ser possível “restabelecer a necessária confiança” das Forças Armadas caso ele tomasse atitudes como mudanças ministeriais e combate às greves.
Essa tese é reforçada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek em conversa com o mandatário por volta das 18h.
Em Brasília, por volta das 19h, o coronel americano Vernon Walters, que participara das articulações contra Goulart durante o mandato, informou a Washington que o golpe no Brasil corria o risco de não ocorrer por falta de apoio do Exército de São Paulo. Àquela altura, o general Amaury Kruel, chefe das Forças em território paulista, era pressionado para aderir ao golpe.
Ele telefonou três vezes para Jango pedindo, assim como JK, o rompimento com a esquerda e a derrubada dos ministros da Justiça, Abelardo Jurema, e o da Casa Civil, Darcy Ribeiro os dois eram identificados como os mais radicais do governo.
Jango respondeu: “General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”.
Por volta das 23h, Kruel decidiu aderir à tomada do poder pelos militares. O governador Carlos Lacerda, com uma metralhadora na mão, comemorou a iniciativa do general.
MADRUGADA E MANHÃ DE 1º DE ABRIL
Era por volta de meia-noite quando o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) determinou o início de uma greve em todo o país, em apoio a Jango e em resposta às prisões, ocorridas na véspera, de vários líderes sindicais pela Polícia da Guanabara.
Durante a madrugada, Castello Branco mudou três vezes de esconderijo, e Costa e Silva, duas. Este último disparou cerca de cem ligações e mandou três generais levantarem as principais unidades no Rio.
O jornal Correio da Manhã publicou um editorial intitulado “Fora”, que dizia: “Não resta outra saída ao sr. João Goulart senão entregar o governo ao seu legítimo sucessor”.
Segundo o jornalista Elio Gaspari em “A Ditadura Envergonhada”, Luiz Carlos Prestes, que parecia tranquilo na noite anterior, manteve 40 mil militantes do Partido Comunista de sobreaviso. Para uma possível resistência, a UNE (União Nacional dos Estudantes) pediu mobilização em atos públicos.
Ao fim da manhã, o então ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, visitou Jango no palácio e disse crer que o Departamento de Estado americano apoiaria os militares golpistas.
TARDE DE 1º DE ABRIL
Em uma tentativa de aliviar as tensões e reverter a consumação do golpe de Estado, o então ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, telefonou para Jango pedindo o rompimento com a esquerda. Após nova recusa de Jango, Ribeiro deixou suas funções no governo.
Foi por volta de 12h15 que o presidente, aconselhado pelo comandante do 1º Exército, Moraes Âncora, decidiu ir a Brasília, onde poderia organizar alguma resistência.
Ainda no Rio, Âncora tentou negociar com Costa e Silva um encontro com Kruel, chefe das tropas paulistas, na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), em Resende, a meio caminho entre o Rio e São Paulo, tentando reverter a adesão ao golpe.
Na academia, o general Pery Bevilacqua, chefe das tropas do Rio e antes a favor de Jango, se uniu ao Exército de Minas e de São Paulo. Kruel sugeriu o nome do general Costa e Silva para assumir o Ministério da Guerra.
No fim da tarde, Castello Branco apareceu no forte de Copacabana, onde foi homenageado como se fosse o novo ministro, com uma salva de 24 tiros de velhos canhões. Como o pânico se espalhou na zona sul do Rio, a salva foi interrompida ao quinto disparo.
NOITE DE 1º DE ABRIL
Por volta das 19h, Lacerda, chorando, falou por telefone com a TV Rio: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado”. Enquanto isso, em Brasília, o embaixador americano no país, Lincoln Gordon, anunciou a Washington que “a revolta democrática está 95% vitoriosa”. Já a embaixada soviética queimou papéis com medo de ser atacada.
Por volta das 22h30, Jango deixou a Granja do Torto e foi para Porto Alegre num avião da FAB (Força Aérea Brasileira).
MADRUGADA E MANHÃ DE 2 DE ABRIL
Por volta de meia-noite, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, exclamou em sessão extraordinária: “Declaro vaga a Presidência da República”. Em seguida, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, foi empossado presidente, mesmo com Jango ainda em território nacional, o que tornava a vacância ilegal, já que a declaração era prevista somente em viagens ao exterior sem autorização do Legislativo.
O avião presidencial com Jango e Assis Brasil pousou em Porto Alegre durante a madrugada, e o presidente dirigiu-se à casa do comandante do 3º Exército. Reuniu-se com Leonel Brizola e, após ficar sabendo de uma série de más notícias, teve uma crise de choro.
Por volta das 5h30, o general Floriano Machado avisou Jango que ele deveria deixar o país caso não quisesse ser preso. Ele, então, voou com Assis Brasil para a fazenda Rancho Grande, em São Borja (a 585 km de Porto Alegre), onde estavam sua mulher e seus filhos. De lá, a família viajou para um rancho às margens do rio Uruguai.
De Washington, o presidente Lyndon Johnson telegrafou a Mazzilli apresentando-lhe “calorosos votos de felicidade”.
TARDE DE 2 DE ABRIL
Por volta das 13h, Jango, acompanhado por Assis Brasil, pediu asilo ao governo uruguaio e, dois dias depois, deixou o território brasileiro.
Em Brasília, Auro Moura de Andrade, presidente do Congresso, reuniu-se com o chefe da representação americana na capital. De Washington, o subsecretário de Estado, George Ball, enviou uma mensagem ao embaixador Lincoln Gordon felicitando pelos esforços durante a consumação do golpe.
Redação / Folhapress