SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É difícil de acreditar que o mesmo ser humano que contempla e decifra os mais profundos mistérios do Universo é o que despreza a natureza e destrói seu próprio mundo. “O Despertar do Universo Consciente” (Record, 252 págs.), mais novo livro de Marcelo Gleiser, busca realinhar essas duas perspectivas opostas, tentando incutir em seus leitores hábitos e ideias que nos ajudem a viver em harmonia com o planeta que nos abriga e nutre.
A obra do físico brasileiro radicado nos Estados Unidos, onde leciona no Dartmouth College, é autodeclarada no subtítulo como “um manifesto para o futuro da humanidade” e sua proposta é boa, embora limitada e de difícil implementação.
Como Jack, vamos por partes.
No livro, Gleiser faz uma recapitulação histórica do copernicanismo, revolução iniciada no século 16 quando o astrônomo polonês Nicolau Copérnico apresenta a tese de que não seria a Terra o centro do Universo, mas sim o Sol, relegando nosso mundo à categoria de apenas mais um dos vários planetas que orbitam em torno dele.
Ao navegar pela consolidação dessa visão, acompanhada pela revolução científica e pela filosofia iluminista que marcam o início da era moderna, o físico resgata razões pelas quais a humanidade trata a natureza ao seu redor como algo de que pode dispor a seu bel-prazer.
Para ele, a raiz da atual atitude de devastação incomensurada, que nos tempos atuais está provocando a crise climática e a sexta grande extinção de espécies conhecida pela ciência (a última deu cabo dos dinossauros), está nessa forma de pensar o mundo, colocando o ser humano no topo de uma hierarquia, com todo o resto apenas como objeto de subjugo.
Com sua verve poética e humanista, Gleiser vê sim a humanidade numa condição de privilégio, como a única entidade da biosfera terrestre capaz de pensamento abstrato -capaz de contar histórias, incluída aí a do próprio surgimento e evolução do Universo, graças ao desenvolvimento da ciência.
Na evolução do contar dessa história, por sinal, ele toma a atitude ousada (talvez até temerária, por motivos que logo discutiremos) de propor uma filosofia pós-copernicana. O físico admite que houve boas razões para apostar na noção de que a Terra é apenas mais um planeta e, por extensão, que o Sol é apenas mais uma estrela, e cada estrela tem sua família de planetas, e que o Sol se junta a centenas de bilhões de estrelas na nossa vizinhança formam a Via Láctea, nossa galáxia, apenas uma de centenas de bilhões de galáxias espalhadas pelo cosmos -o que faz da Terra, na escala cósmica, se reduzir a um grão de poeira. Isso tudo de fato é verdade.
Contudo, para ele, estudos avançados realizados tanto sobre os planetas do Sistema Solar como sobres aqueles localizados ao redor de outras estrelas mostram que a Terra está longe de ser um lugar comum. Nas redondezas do Sol, não há nenhum outro planeta com uma biosfera pujante e duradoura como a terrestre, a despeito de não se poder descartar ainda a existência de vida (pregressa ou presente) em Vênus, Marte ou nas luas geladas dos planetas gigantes gasosos.
Somando as idiossincrasias de nosso próprio planeta (inclinação do eixo, presença de uma Lua grande, tectonismo etc.), Gleiser se inclina na direção da hipótese da Terra Rara, avançada originalmente por Donald Brownlee e Peter Ward, segundo a qual vida, para não falar na inteligência, seria ocorrência extremamente infrequente no Universo.
A partir disso, Gleiser defende a troca do copernicanismo pelo biocentrismo, em que a vida (e por extensão a Terra) ganharia espaço central e privilegiado -filosofia que nos faria retornar a valores cultivados por nossos ancestrais distantes, que promoviam (sob outras bases) uma “sacralização” da Terra.
A ideia de valorizar a vida é, de fato, o que há de melhor na obra. Mas a base de sustentação é trepidante. É cedo para proclamar a vitória da hipótese da Terra Rara. Ainda não sabemos se Marte e Vênus foram habitáveis no passado -ao passo que já sabemos que a Terra será inabitável no futuro (coisa de 1 bilhão de anos). Não sabemos se Europa e Encélado, luas de Júpiter e Saturno respectivamente, abrigam vida em seus oceanos subsuperficiais. Quanto aos exoplanetas, mal começamos a caracterizá-los -tudo que sabemos deles, até o momento, é que sua existência reforça de maneira geral o princípio copernicano, colocando o surgimento da Terra em si em circunstâncias pouco especiais.
Gleiser argumenta que já descobrimos mais de 5.000 exoplanetas e nenhum até agora se revelou parecido com a Terra. Porém não menciona que nossos métodos de detecção privilegiam mundos com órbitas e tamanhos em geral diferentes dos da Terra e que mal passamos do ponto em que só identificamos a órbita, o tamanho e a composição aproximada (se rochoso ou gasoso) desses mundos.
Pode muito bem ser que a Terra seja mesmo raríssima, assim como a vida. Entretanto, a postura mais honesta seria a essa altura admitir que o júri ainda não voltou com esse veredito. Ao associar a repactuação da humanidade com a Terra à hipótese de raridade, o físico corre o risco de vê-la caducar em período relativamente curto, à medida que a ciência tiver maior compreensão do que nos aguarda nos bilhões de planetas potencialmente habitáveis espalhados pela Via Láctea.
Felizmente, sua proposta não precisa depender estritamente disso. Mesmo que o Universo esteja cheio de vida, em lugar algum ela percorrerá exatamente os mesmos caminhos evolutivos que traçou por aqui, o que faz da biosfera terrestre algo realmente especial, em particular para nós, que evoluímos dela.
“Essa é uma revolução dedicada ao despertar espiritual da humanidade, [grifo dele] uma espiritualidade sem denominação específica, centrada na reconexão de cada um de nós com a terra e com a coletividade da vida à qual pertencemos.” Repare que a vida e nosso planeta não precisam ser raros para que isso seja válido -o que é ótimo.
Gleiser termina com três princípios que gostaria de ver o leitor seguir: o do menos, que envolve consumir menos recursos críticos, como água e energia; o do mais, que envolve a reaproximação com o mundo natural; e o da consciência, na compra de produtos e bens, exigindo posturas ecologicamente corretas das empresas que os fornecem.
É uma receita simples, e calcada em ações individuais (algo claramente insuficiente para resolver crises como a do consumo desenfreado de combustíveis fósseis), que guarda certa ingenuidade, mas também está recheada de boas intenções.
Seria de fato bom se fosse possível resolver todos os nossos problemas ambientais e sustentar 8 bilhões de habitantes (logo mais serão dez) economizando no bife ou na conta de luz. Não é. Mas ações como essas ajudarão a criar algo que Gleiser considera essencial nessa luta: um movimento que contagie a todos nós, no estabelecimento de um novo pacto com a natureza e com nosso próprio planeta.
O DESPERTAR DO UNIVERSO CONSCIENTE
Preço: R$ 69,90 (252 págs.)
Autoria: Marcelo Gleiser
Editora: Record
SALVADOR NOGUEIRA / Folhapress