Insatisfação dos militares, crises, Guerra Fria: entenda o que levou ao golpe de 1964

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O golpe de 1964 e a guinada para uma ditadura militar ocorreram como resultado de uma série de conflitos, crises e decisões políticas envolvendo os principais integrantes do poder no Brasil.

Existiam determinantes, internos e externos, que acirraram a polarização da política brasileira e a conspiração pela deposição de João Goulart (PTB) da Presidência da República e a permanência dos militares no comando do país por 21 anos.

Entre os elementos internos, estavam a tensão em alta dos militares com os governos civis, uma relação historicamente problemática no país; as decisões individuais da cúpula das Forças Armadas e também de Jango; e aspectos econômicos e trabalhistas, como a inflação e a sucessão de greves.

Como fatores externos, existiam a polarização trazida pela Guerra Fria e o modo como os Estados Unidos viam a situação brasileira –o país era acompanhado com atenção pelos americanos por ser considerado uma potência regional, capaz de alterar a balança de poder na América do Sul.

Entenda alguns dos elementos que causaram tensão e que culminaram no golpe de 1964:



Crise política e econômica

No centro de toda a tensão, estavam as crises política e econômica. A instabilidade política, com antecedentes desde Getúlio Vargas, acentuou-se após a renúncia de Jânio Quadros (PTN) da Presidência, em tentativa frustrada de ampliar suas forças, em 1961.

João Goulart teve dificuldades para assumir o poder. Estava em viagem quando Jânio renunciou e quase foi impedido pelos militares de voltar ao território brasileiro. De qualquer forma, teve seu poder tolhido após uma mudança do sistema de governo para o parlamentarismo, que seria extinto em 1963.

Além disso, Jango tinha uma base parlamentar modesta, o que dificultava a criação de uma agenda com medidas que pudessem aplacar as tensões. Era alvo da desconfiança do empresariado e de outros setores mais conservadores, que o viam como muito próximo do sindicalismo.

A instabilidade econômica acelerava o processo de erosão do governo. Segundo Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em meio a uma demanda por soluções imediatas para conter o processo inflacionário, o então presidente propunha respostas de prazo mais longo, o que irritava o empresariado.

Além disso, as greves se acumulavam, especialmente no Rio de Janeiro.

Guerra Fria, Brasil e Estados Unidos

A Guerra Fria também impulsionou a ruptura institucional. Segundo Manoel Galdino, professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), havia naquele momento muita pressão para que os países escolhessem um lado, o capitalismo representado pelos EUA e o socialismo que tinha a União Soviética na linha de frente.

“Naquela época, um governo como o do Jango, que falava em fazer políticas públicas para a classe trabalhadora, indicava um aceno ao socialismo”, diz o docente.

De acordo com Galdino, ainda que as reformas de base, principal bandeira do governo, não tivessem um caráter de mudança radical do sistema, há uma diferença entre o que uma política pública pode objetivamente promover e a percepção sobre essa política no Brasil e no exterior.

Essas sinalizações preocupavam os americanos, que, segundo Caroline Bauer, viam o Brasil como um país extremamente importante geopoliticamente. “Perder o Brasil significaria muito para os EUA em termos de influência na região”, afirma.

Além de todo o trabalho para uma ajuda logística para os golpistas, estimulada pelo embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, a Casa Branca ainda financiou grupos e políticos conservadores, o que era ilegal, e colaborou com as conspirações pela derrubada de Jango.

Militares no poder

Outra relação importante de ser analisada para entender as tensões da época é a do governo civil com as Forças Armadas. Tanto Galdino quanto Bauer afirmam ver um histórico da interferência dos fardados em questões civis.

Ambos ressaltam a normalização da intervenção militar nos governo civis, citando não apenas a proatividade da caserna, com ímpetos autoritários, mas também a frequência com que os civis recorreram aos militares para que eles resolvessem impasses de ordem política. Para Bauer, essa naturalização não é benéfica para o país.

“O ineditismo dessa ação militar está no fato de os militares ficarem no poder mesmo com a falta de unidade dentro das Forças”, diz a professora.

Para ela, a formação militar também delineava a atuação das Forças no governo, focando a geopolítica.

Fator Jango

Além de todas as questões de contexto, houve decisões de Jango que contribuíram para o cenário de tensão crescente, como a apresentação do decreto de estado de sítio ao Congresso Nacional, em outubro de 1963 –depois ele recuou.

Outros momentos críticos foram as idas do presidente ao comício da Central do Brasil e a reunião com praças militares no Salão do Automóvel, ambos no Rio de Janeiro e em março de 1964, quando o país entrava em ebulição.

Os movimentos do presidente sinalizaram um afastamento da política de conciliação, com uma guinada mais agressiva a favor das reformas de base, vistas como um aceno ao socialismo.

Segundo Galdino, Jango não dimensionou corretamente as conspirações contra seu governo, vindas tanto dos fardados quanto de políticos e grupos econômicos, e subestimou a caserna, o que abriu espaço para um possível golpe de Estado.

“Jango precisava ser mais efetivo em neutralizá-los, já que tinham acesso a recursos importantes, e dialogar com os estados. Esse erro estratégico permite que militares possam dar o golpe”, diz o professor.

Configuração das instituições brasileiras

Outro fator lembrado pelos pesquisadores ouvidos pela reportagem é a construção das instituições brasileiras naquela época. A Constituição de 1946 criou uma relação entre Executivo e Legislativo diferente da existente hoje, no texto de 1988, e o presidente tinha menos poderes.

Galdino cita a inexistência das medidas provisórias –o decreto-lei, antecessor das MPs, foi incluído na Constituição de 1967– e dos pedidos de urgência para projetos no Congresso oriundos da Presidência da República.

Para ele, a falta de instrumentos que equilibrassem a relação entre os Poderes aumentava a chance de surgirem crises. “Se o presidente não tinha tanto poder e era mais difícil coordenar uma base estável no Congresso, a sensação era de uma crise permanente.”

O professor acrescenta: “Quando há crise no governo, você desestimula que pessoas tanto na situação quanto na oposição tentem assumir o espaço de liderança principal do país, é difícil ter estabilidade”.

MATHEUS TUPINA / Folhapress

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