SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os 60 anos do golpe chegam acompanhados de uma leva de lançamentos editoriais e reedições sobre uma das passagens mais relevantes da história republicana do Brasil.
A reportagem selecionou 12 obras. Nesse pacote de novidades, há livros de historiadores sobre aquele momento específico de ruptura, fins de março e início de abril de seis décadas atrás, e acerca do período mais amplo da ditadura, de 1964 a 1985.
Também chegam às livrarias obras que reúnem artigos, memórias e crônicas de lideranças da política e da sociedade civil sobre o regime autoritário.
Soldado monta guarda em frente ao Congresso, em Brasília, fechado dias antes pela ditadura militar após o AI-5, assinado por Costa e Silva, em 1968; imagem de Orlando Brito está na capa de ‘Tempos de Chumbo’, livro organizado por Carolina Brito, filha do fotógrafo que morreu em 2022 Acervo Instituto Moreira Salles / Coleção Orlando Brito **** A onda de lançamentos ainda traz obras que rememoram a cultura brasileira nas décadas de 1960 e 1970. E reedições dão vida nova a trabalhos de fôlego que estavam fora de catálogo.
Predominam os livros de não-ficção, mas a ditadura também está bastante presente em contos e até numa graphic novel.
A historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloisa Starling lança “A Máquina do Golpe – 1964: Como Foi Desmontada a Democracia no Brasil”.
O livro esmiúça as principais etapas da ruptura, acompanhando o período que vai de 31 de março, dia em que as tropas do general Olympio Mourão Filho deixaram Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, a 11 de abril, quando outro general, Castello Branco, foi eleito pelo Congresso para assumir a Presidência -Castello era o único candidato.
Neste mês de março, saíram os primeiros dois capítulos do livro de forma online; a segunda parte é publicada em abril e, na sequência, a terceira e última. Ainda neste semestre, o livro físico chega às lojas.
Starling coordena a coleção Arquivos da Repressão no Brasil, da editora Companhia das Letras, que lança “A Transição Inacabada – Violência de Estado e Direitos Humanos na Redemocratização”, do também historiador Lucas Pedretti.
Grosso modo, ele detalha como, a partir dos anos 1980, o país se organizou contra a violência da ditadura em relação aos militantes de oposição, mas jamais enfrentou com rigor a repressão policial aos grupos periféricos, em geral jovens negros. Estabeleceu-se assim, como registra, uma “dicotomia rígida entre os presos políticos e os ‘bandidos comuns'”.
“Por que a violência do Estado contra os primeiros passou a ser vista como inadmissível pela sociedade brasileira e contra os segundos ainda é encarada como legítima?”, Pedretti questiona.
Em “Ilícito Absoluto”, o pesquisador Pádua Fernandes reconstitui uma saga jurídica: o processo levado adiante pela família de Amelinha de Almeida Teles contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
O antigo chefe do DOI-Codi perdeu em todas as instâncias e, pela primeira vez, um agente da ditadura foi responsabilizado por tortura. Ustra, como se sabe, é um dos ídolos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Entre os livros com contribuições de diversos autores, um dos destaques é “Tempos de Chumbo”, que integra a My News Explica, coleção organizada pelo canal.
Chamam a atenção entre os 24 textos as memórias dos familiares mais próximos do presidente deposto João Goulart, o Jango: a viúva Maria Thereza e os filhos Denize e João Vicente.
Também estão entre os autores a deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP), que lembra a descoberta de uma vala clandestina com mais mil ossadas em Perus na época em que era prefeita de São Paulo, e o ex-senador Pedro Simon (MDB-RS), que revive as movimentações da oposição ao regime militar.
Um dos trunfos de “Tempos de Chumbo” são as imagens registradas por Orlando Brito (1950-2022), um dos principais fotojornalistas do país no período da ditadura. Carolina, sua filha, é a organizadora do livro.
“Tempos de Chumbo” será lançado na terça (2), às 10h, no Senado, em Brasília, onde acontecerá a abertura de uma exposição com fotos de Brito.
Outro lançamento com vários autores é “Um Novo Tempo”, uma parceria da Mórula Editorial com a Ação da Cidadania, ONG fundada por Betinho nos anos 1990. Tem organização de Daniel Souza, Gylmar Chaves e Paulo Abrão.
Há artigos sobre a ditadura que já tinham sido publicados em livros anteriores, como os dos escritores Rose Marie Muraro e Frei Betto, e textos inéditos, assinados por nomes como a diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, a historiadora Dulce Pandolfi e a jornalista Miriam Leitão.
Saem ainda pelo menos dois livros que se dedicam ao diálogo entre a cultura e aqueles tempos de repressão. Em “Rebeldes e Marginais”, a crítica literária e ensaísta Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda) lembra movimentos que acompanhou de perto, como o tropicalismo, o cinema novo e o cinema marginal.
O lançamento toma como base trabalhos publicados por ela no final dos anos 1970 e no início da década seguinte em coautoria com o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima.
A outra novidade nessa ponte que liga a cultura à política é “Apenas uma Mulher Latino-americana”, em que, num tom pessoal, a jornalista Bruna Ramos da Fonte aborda as canções engajadas produzidas nessa época no Brasil e nos países vizinhos.
Entre as reedições, há obras de cunho mais analítico, como “Reinventando o Otimismo: Ditadura, Propaganda e Imaginário Social no Brasil”, do historiador Carlos Fico, e “A Esquerda e o Golpe de 1964”, do escritor Dênis de Moraes.
E outras com tratamento mais jornalístico, caso de “O Caso dos Nove Chineses”, assinado por Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Mello. O livro rememora o episódio de abril de 1964 em que chineses foram torturados no Rio de Janeiro, o primeiro escândalo internacional de violação dos direitos humanos protagonizado pela ditadura brasileira.
Há, por fim, os lançamentos mais próximos da ficção, caso de “Na Corda Bamba”, a estreia do historiador Daniel Aarão Reis na literatura. Dividido em três partes -Ditadura, Exílio e Retorno-, esse livro de contos reúne personagens ligados à luta armada e expõe o autor num passeio pela autoficção.
Também uma ficção com os coturnos pisando a realidade, “Chumbo” é uma graphic novel escrita e ilustrada por Matthias Lehmann, francês de família brasileira. Ele conta a trajetória de dois irmãos mineiros, Severino, um militante de esquerda, e Ramires, um entusiasta da ditadura.
Severino, aliás, é inspirado em um dos tios de Lehmann, o escritor Roberto Drummond (1933-2002), autor de romances como “Hilda Furacão”.
SAIBA MAIS SOBRE OS LIVROS
Veja seleção de 12 obras, entre lançamentos e reedições
Ilícito Absoluto
de Pádua Fernandes; ed. Patuá; R$ 120
A Máquina do Golpe
de Heloisa Starling; ed. Companhia das Letras; R$ 9,90 (2 primeiros capítulos)
A Transição Inacabada
de Lucas Pedretti; ed. Companhia das Letras; R$ 99,90
Rebeldes e Marginais – Cultura nos Anos de Chumbo (1960-1970)
de Heloisa Teixeira; ed. Bazar do Tempo; R$ 60
Apenas uma Mulher Latino-americana
de Bruna Ramos da Fonte; ed. Rocco; R$ 63
Mynews Explica Tempos de Chumbo
org. Carolina Brito; ed. Almedina; R$ 55
Um Novo Tempo
org. Daniel Souza, Gylmar Chaves e Paulo Abrão; Mórula Editorial; R$ 72
A Esquerda e o Golpe de 1964
de Dênis de Moraes; ed. Civilização Brasileira; R$ 99,90
Reinventando o Otimismo: Ditadura, Propaganda e Imaginário Social no Brasil
de Carlos Fico; FGV Editora; R$ 54
O Caso dos Nove Chineses
de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo; C&M Livros
Na Corda Bamba – Memórias Ficcionais
de Daniel Aarão Reis; ed. Record; R$ 79,90
Chumbo
de Matthias Lehmann; ed. Nemo; R$ 119,80
NAIEF HADDAD / Folhapress