Como a ditadura militar produziu violência com cidades de ferro e concreto

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A Amazônia já era.” “A floresta domada.” “A grande aventura de desbravamento da selva.” Esses eram os títulos de reportagens que, no início da década de 1970, descreviam a construção da rodovia transamazônica pelo regime militar, projetada para rasgar o Brasil de Cabedelo, na Paraíba, à Lábrea, no Amazonas.

A obra faraônica, como ficariam conhecidas as construções megalomaníacas do período por seus tamanhos e aportes financeiros monumentais, nunca foi concluída –mas se tornou símbolo da arquitetura de ferro, asfalto e concreto que se expandiu nos anos seguintes, atravessando a natureza e comunidades que estavam em seu caminho.

A construção civil foi um dos pilares que sustentaram a modernização a qualquer custo dos militares e, não por acaso, foi no período da ditadura que as paisagens brasileiras passaram por grandes alterações. Os moldes usados na época para organizar o território não caíram em desuso e hoje estão relacionados com a explosão demográfica das periferias nos grandes centros urbanos, por exemplo.

Essa é a análise proposta pela exposição “Paisagem e Poder”, no Centro MariAntonia, da Universidade de São Paulo. Por meio de fotografias e pesquisas recentes envolvendo a arquitetura do período militar, a mostra traça as consequências nos dias atuais.

Desbravar um interior supostamente vazio e ocupá-lo era uma ideia antiga das elites brasileiras no século 19, mas ganhou impulso pelo autoritarismo do regime militar, que criou órgãos federais para agir em diferentes estados e municípios, especialmente onde havia potencial de exploração de minérios, como bauxita, cobre e minério de ferro.

Exemplo disso foi o Programa Grande Carajás, no Pará, após a descoberta de riquezas minerais na Serra dos Carajás, que envolveu a construção de estradas para o escoamento da produção e a hidroelétrica de Tucuruí para trazer energia à mineração.

Na maioria das regiões, já viviam indígenas ou outras comunidades, transferidas arbitrariamente ou empregadas como mão de obra barata nas grandes construções, onde as leis trabalhistas não chegavam. “Ainda mantemos essa lógica extrativista, de violência no manejo de recursos naturais”, diz Paula Dedecca, curadora da exposição e especialista em arquitetura sustentável.

A expansão estava ligada ao plano militar de segurança nacional, segundo Victor Próspero, arquiteto e vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo, o IABsp. “O vazio demográfico era considerado um território politicamente frágil e suscetível à formação, por exemplo, de focos de guerrilha ou à politização de comunidades que poderiam fazer oposição ao regime”, diz. “Tinha também uma visão econômica, mas certamente não para o desenvolvimento local.”

Os ganhos das construções eram drenados para polos econômicos como São Paulo, onde ficavam a maior parte das empreiteiras e escritórios de engenharia que abocanharam o filão de mercado relacionado ao planejamento e à execução das obras de infraestrutura.

O desenvolvimento defendido pelos militares era excludente, afirma Dedecca. “As construções não emplacaram no desenvolvimento social, na distribuição de renda ou em melhores condições de educação e saúde. Para piorar, não tínhamos imprensa livre ou fiscalização”, diz.

A dependência dos empreendimentos frearam a diversificação de atividades econômicas nas cidades interioranas. “Uma grande estrutura chegava ao local, com lógica e alojamentos próprios, ignorando o modo de vida e de produção que existiam ali”, diz Próspero. Exemplo é a usina hidrelétrica de Itaipu, gênese do Movimento de Atingidos por Barragens após a desterritorialização de mais de três mil pessoas.

“Governar é abrir estradas”, dizia o presidente Washington Luís durante as eleições de 1920. O lema seria a palavra de ordem dos anos de chumbo. “Na ditadura, essa ideia se intensifica porque há um pacto entre governo e construção civil”, diz Prospero.

Enquanto as obras impunham construções complexas sem pensar em frutos sociais, o modelo de deslocamento escolhido para unir territórios foi o mais simples e barato possível. “Fazer estrada é fácil. Você desmata e asfalta. Era um ganho fácil para as empreiteiras e um pacto com as empresas automobilísticas.”

Nas cidades, a dinastia do asfalto e concreto prevaleceu por meio do Banco Nacional de Habitação, o BNH. Inicialmente desenvolvido para financiar habitações a pessoas de baixa renda, 80% dos empréstimos concedidos pelo banco foram destinados à construção de edifícios para as classes média e alta.

Nas periferias, o BNH produziu grandes conjuntos habitacionais como a Cohab de Itaquera, na zona leste de São Paulo, mas sem investir em infraestrutura ou ligações efetivas com o centro –visto que o automóvel era o transporte priorizado, e quem morava na periferia não tinha como comprar um.

O resultado disso, diz o curador, foi a explosão de bairros periféricos isolados e favelas, como uma possível resposta das populações marginalizadas às necessidades de moradia. As classes populares se tornavam mão de obra para a construção de edifícios, ruas e avenidas. “Os prédios ficaram cada vez mais genéricos e, até hoje, um trabalhador da construção civil é fácil de contratar e demitir”, diz Próspero.

Além do Minhocão, exemplos de construções da época foram o aeroporto do Galeão e a avenida Perimetral, no Rio de Janeiro, e o Centro Administrativo da Bahia e a avenida Paralela, em Salvador.

“São Paulo é uma desordem produzida de forma planejada. A construção civil ganhou, na época, uma força de decisão desproporcional, que suprimiu outras possibilidades de cidade, como as áreas verdes”, diz Próspero.

Assim como ficou impressa em outras capitais brasileiras, a arquitetura paulistana foi um espelho da fetichização do progresso, sinônimo de asfalto e máquinas. O próprio BNH financiou, por exemplo, a canalização de rios na cidade, a partir de 1969.

“Nesse momento de autoritarismo, a paisagem que foi produzida é, de modo cru e bruto, o resultado de um sistema econômico pouco humanizado”, diz o arquiteto. Se as paisagens são representações espaciais de como nos organizamos socialmente, a ditadura promoveu a violência através do espaço hostil e duro. “Agora mais do que nunca, frente à crise ambiental, emergência climática, seria o momento da gente repensar um pouco essa lógica de relação com o território”, diz Dedecca.

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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