Festival É Tudo Verdade vira tribunal com documentários que acusam e defendem

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Enquanto o É Tudo Verdade, maior festival de documentários do país, se preparava para sua 29ª edição, uma obra documental ganhava cada vez mais exposição na internet, com vídeos de TikTok elencando seus pontos mais aflitivos e reportagens na imprensa internacional explicando os escândalos que “Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV” desenterrava.

Uma série, não um filme, a produção ainda indisponível no Brasil mostra como produtores do canal Nickelodeon roteirizavam para seus astros mirins cenas de alto teor sexual e tinham comportamento abusivo no set. Dan Schneider, um dos chefões da época, continua trabalhando com crianças.

Por isso mesmo, é curioso que o É Tudo Verdade abra sua programação em São Paulo, nesta quinta-feira (4), com “O Competidor”. Por mais distintos que os títulos sejam, ambos usam o alcance do documentário para denunciar situações tóxicas que ocorrem num passado em que a percepção e a vigilância em relação ao que mostram eram diferentes.

Não que tudo seja assunto de tribunal, mas os debates éticos e morais que ambos propõem causam espanto e reflexão na mesma medida. No caso de “O Competidor”, conhecemos a história de Tomoaki Hamatsu, ou Nasubi, que em japonês significa berinjela, apelido que ganhou por ter o rosto alongado.

O nome pegou também pelo fato de o rapaz ter seu pênis coberto com um emoji do vegetal durante os 15 meses que teve sua vida transmitida na televisão japonesa. Precursor do reality show, o Denpa Shonen exibiu para todo o país, em 1998, a rotina de Nasubi enquanto o confinava num pequeno apartamento.

Sua missão era sobreviver apenas com itens que ganhava em concursos -no Japão, as pessoas têm o hábito de ligar para programas de rádio e escrever para revistas para participar de sorteios, que os premiam com todo tipo de produto ou valor monetário.

Ao longo dos 15 meses, Nasubi teve que contar com a sorte para poder se vestir e se alimentar, sem contato com o exterior e exposto a situações que qualquer um veria como desumanas. Mesmo assim, cenas como aquelas em que o rapaz era obrigado a comer ração de cachorro ou em que, faminto, recebe um pacote de arroz sem nenhuma panela para cozinhá-lo foram uma sensação de audiência.

“Todos foram cúmplices enquanto espectadores, mas é difícil, porque nossa percepção era outra. Há divergências sobre quais informações eram dadas ao público”, diz Clair Titley, diretora de “O Competidor”, que foi exibido no Festival de Toronto e que, após a abertura do É Tudo Verdade, terá sessões para o público.

Ela decidiu contar a história de Nasubi porque viu pessoas falando sobre o reality a partir de uma tentativa de exotizar o Japão e dizer que sua televisão é extrema. Faltava, anos depois, um olhar mais atento à experiência do próprio rapaz. Titley acredita que não teve dificuldade para convencê-lo a participar do documentário justamente porque esta foi a primeira vez que ele pode narrar a sua versão dos fatos.

Legalmente, Nasubi pouco poderia ter feito. O lendário produtor do Denpa Shonen deixa claro, ao ser entrevistado já no início do filme, que as portas do apartamento ficavam destrancadas e que não havia um contrato que o prendesse ali. Existia, portanto, consentimento. Por outro lado, parece pouco ético transformar em entretenimento -e lucro- aquela exposição ao ridículo.

Dessa forma, “O Competidor” pode ser visto como uma espécie de julgamento extrajudicial, chegando onde a lei japonesa não poderia -expondo argumentos de acusação e defesa, para que o espectador seja juiz do caso.

É uma situação semelhante à de “Quiet on Set” e de outros filmes e séries documentais que jogam com a ideia de seus personagens serem vítimas ou vilões, promovendo um tribunal cinematográfico.

Em algumas obras, não há repercussão legal cabível, como acontece com “O Competidor” ou “House of Hammer” e “Framing Britney Spears”. Os dois últimos retratam anos de relações tóxicas dentro da família de Armie Hammer, ator que caiu em desgraça após acusações de abuso sexual e canibalismo, e da de Britney Spears, mantida pelo pai numa curatela que o documentário mostra ter enchido muitos bolsos.

Outras lidam com casos polarizantes que passaram pela Justiça, mas tiveram desfechos que não agradaram a todos, como “Johnny Depp x Amber Heard”, sobre o divórcio midiático e as acusações de agressão mútuas dos atores de Hollywood, e “Deixando Neverland”, que teve uma segunda parte anunciada, sobre os supostos abusos sexuais cometidos por Michael Jackson, duas décadas depois de o cantor ser absolvido numa investigação criminal.

Simon Leviev, retratado em “O Golpista do Tinder” por enganar mulheres e fugir com seu dinheiro, chegou a ser preso, mas agora está solto e virou alvo das câmeras. Jeffrey Epstein, de “Poder e Perversão”, morreu na prisão antes de ser condenado num novo caso de abuso sexual infantil e também viu seu caso ganhar sobrevida.

No Brasil, “Pacto Brutal”, ao escolher não falar com o assassino da atriz Daniella Perez, Guilherme de Pádua, recebeu críticas por supostamente promover um novo julgamento para alguém que já havia cumprido pena, sem ouvir seu lado.

Agora, “Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho”, que expõe nomes que controlam a contravenção no Rio de Janeiro, terá sua segunda temporada impactada pela prisão dos mandantes do assassinato de Marielle Franco.

“Eu, pessoalmente, não fiz esse filme para apontar dedos”, diz Clair Titley, sobre o “O Competidor”. “Enquanto cineasta, quero promover discussões. Claro que não acho correto o que fizeram com Nasubi, mas gosto do fato de cada um olhar para a história da sua maneira, inclusive pela perspectiva de relações abusivas.”

Para Amir Labaki, fundador do É Tudo Verdade, agregar posicionamentos e confrontá-los diante do espectador está no cerne do gênero documental. “É absolutamente contemporânea, na produção não-ficcional, a afirmação do documentarista como maestro de uma polifonia de pontos de vistas, da justaposição e contraste de narrativas distintas da mesma situação”, afirma.

Ainda no É Tudo Verdade, “Diários da Caixa Preta”, que concorre entre os longas documentais, mostra a luta da diretora Shiori Ito para levar o homem que a estuprou à Justiça –algo que ele, próximo do ex-premiê Shinzo Abe, conseguiu evitar. Outros 76 longas, médias e curtas-metragens são exibidos no festival até o dia 14 em salas de São Paulo e do Rio de Janeiro, com entrada gratuita.

Confira, abaixo, os longas que integram as mostras competitivas e, no site do festival, a programação completa.

COMPETIÇÃO INTERNACIONAL DE LONGAS E MÉDIAS

‘Celluloid Underground’, de Ehsan Khoshbakht

‘Cento e Quatro’, de Jonathan Schörnig

‘Copa de 71’, de Rachel Ramsay e James Erskine

‘Corpo’, de Petra Seliškar

‘Diários da Caixa Preta’, de Shiori Ito

‘E Assim Começa’, de Ramona S. Diaz

‘Mamãe Suriname – Mama Sranan’, de Tessa Leuwsha

‘Mixtape La Pampa’, de Andrés di Tella

‘O Mundo É Família’, de Anand Patwardhan

‘O Relatório da Revolta de 1967’, de Michelle Ferrari

‘Uma Estória Americana’, de Jean-Claude Taki e Alexandre Gouzou

‘Zinzindurrunkarratz’, de Oskar Alegria

COMPETIÇÃO BRASILEIRA DE LONGAS E MÉDIAS

‘Diamantes’, de Daniela Thomas, Sandra Corveloni e Beto Amaral

‘Fernanda Young – Foge-me ao Controle’, de Susanna Lira

‘Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida’, de Bel Bechara e Sandro Serpa

‘Inutensílios’, de Bruno Jorge

‘Lampião, Governador do Sertão’, de Wolney Oliveira

‘Tesouro Natterer’, de Renato Barbieri

‘Verissimo’, de Angelo Defanti

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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