SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O relojoeiro japonês Takashi Morita, de 100 anos, é um hibakusha. O termo significa literalmente vítima da bomba atômica.
Ele estava em Hiroshima às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, quando o artefato nuclear apelidado de Little Boy, com 72 quilos de urânio 235, caiu sobre a cidade matando imediatamente cerca de 70 mil pessoas e afetando outras dezenas de milhares. Foi o marco do fim da Segunda Guerra Mundial.
Morita, que chegou ao Brasil em 1956, integrava o exército japonês e naquela data fazia serviços de rotina de resgate de documentos para protegê-los do fogo.
“Depois da bomba vi focos de incêndio por todos os lados”, lembra ele, que tinha 21 anos e sofreu um ferimento grave no pescoço. “Como eu era militar, depois da explosão fiquei trabalhando durante três dias até não aguentar mais. Tentava ajudar as pessoas que estavam feridas e agonizando. Quando estava esgotado, acabei transferido para um hospital improvisado em uma escola.”
A população de Hiroshima esperava um ataque americano a qualquer momento, mas não poderia imaginar que seria algo daquelas proporções. Supunha-se que seria parecido com o bombardeio de Tóquio, em fevereiro de 1945, quando foram usados aviões B-29 e artefatos incendiários.
Morita, que na época também estava em Tóquio, diz que só sobreviveu ao impacto da bomba atômica porque usava uma farda especialmente grossa –era um dia quente em Hiroshima e todos usavam roupas leves de verão– e também porque não bebeu água nem comeu nada naquele dia.
A vida de Morita, que mora atualmente numa clínica de idosos na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, já rendeu um livro autobiográfico, “A Última Mensagem de Hiroshima: O que Vi e como Sobrevivi à Bomba Atômica”, e agora vai virar um filme de curta-metragem intitulado “Alma Errante – Hibakusha”, dirigido por Joel Yamaji e produzido pela Grão Filme, de Joel Pizzini.
Yamaji tem acompanhado Morita há 30 anos, desde que soube de sua existência, e é um admirador de sua história. O sobrevivente da bomba também dá nome a uma escola técnica em Santo Amaro e recebeu o título de cidadão paulistano.
Embora hoje não tenha sequelas da catástrofe, Morita teve leucemia sete anos depois da bomba. Depois do fim da guerra, ele retomou seu trabalho de relojoeiro que manteve no Brasil até se aposentar aos 60 anos.
Quando chegou por aqui, ele já era casado e com dois filhos. “Aqui é o melhor lugar e eu queria morar num país com clima mais ameno. E me falaram que o Brasil era um paraíso e eu acreditei”, lembra.
O governo japonês só passou a reconhecer a existência de sintomas de doenças decorrentes da radioatividade emanada pela bomba em 1957, 12 anos depois da explosão, mas sem assumir a responsabilidade de cuidar dos enfermos e de seus descendentes.
Só em 1983 o governo se prontificou a oferecer uma indenização de 25 mil ienes mensais (R$ 821) para as vítimas que viviam no Japão. Quem havia emigrado continuava sem direitos. “As pessoas que tinham saído do Japão foram desconsideradas”, afirma a filha Yasuko Morita, 77, que não teve problemas de saúde associados à bomba.
Entre os principais problemas que eventualmente afligem os hibakushas e seus descendentes estão vários tipos de câncer, catarata e problemas de tireoide.
Morita passou os últimos 40 anos lutando pelos direitos dos hibakushas. Também transformou-se em um militante contra as guerras.
Em julho de 1984, junto a outras pessoas que sofreram o mesmo infortúnio, ajudou a criar a Associação dos Sobreviventes da Bomba Atômica, que funcionava em cima de sua mercearia no bairro da Saúde. Na ocasião foram reunidos 70 membros, mas em poucos meses o número saltou para 300, incluindo vítimas de Hiroshima e Nagasaki.
O objetivo da associação era conseguir direitos semelhantes às pessoas que viviam no Japão ou, pelo menos, assistência médica para as famílias dos hibakushas. Num primeiro momento, trataram de agendar um encontro no Ministério do Exterior japonês reivindicando uma visita de uma missão de médicos ao Brasil, o que aconteceu em 1985, e passou a se repetir a cada dois anos.
Foi proposto, porém, que os tratamentos de saúde fossem realizados no Japão. O governo japonês se propunha a pagar a viagem, mas muitos hibakushas alegaram não ter condições físicas de fazê-la. O assunto foi parar na Justiça e só em 2005 as vítimas da bomba que viviam em outros países conseguiram conquistar um pequeno auxílio financeiro para tratar da saúde.
A partir de 2008 a entidade que representa essas vítimas passou a ser chamar Associação Hibakusha Brasil pela Paz devido à influência pacifista de Morita. Segundo Junko Watanabe, 81, representante da organização, há atualmente 63 hibakushas vivos no Brasil.
Ela própria está nessa condição e só soube disso quando tinha 38 anos. Deixou Hiroshima com dois anos de idade quando a cidade foi atingida pela bomba e a história nunca lhe havia sido contada. Só em 1980, em uma viagem que ela fez ao Japão, seus pais lhe contaram que ela era uma hibakusha.
O filme sobre Morita tem o apoio da Associação Brasileira da Cultura Japonesa e Assistência Social (Bunkyo) e do Museu da Imigração Japonesa. As filmagens finais foram feitas no Pavilhão Japonês, no parque do Ibirapuera. Segundo Yamaji, não é um documentário, mas um filme onírico que trata do imaginário que cerca a situação que envolveu Morita. “Eu não queria ficar explorando o sofrimento, a dor, porque a lição dele é mais de superação e de luta pela paz, ele tem essa fixação”, afirma. Entre outras obras, Yamaji é autor de um documentário chamado “Cafundó”, feito em 1986, sobre uma comunidade quilombola de Salto de Pirapora.
Em 2020, estimava-se que houvesse 145 mil hibakushas vivos no mundo, sendo que 1% sofria de doenças acarretadas pela radiação.
VICENTE VILARDAGA / Folhapress