Resistência negra à ditadura teve personagens ‘encantados’, arapongas e mulheres invisibilizadas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Figuras negras importantes contribuíram para a luta contra a ditadura militar brasileira, mas tiveram sua participação diminuída ou apagada da memória nacional. Apesar de pouco lembrada nos relatos oficiais, livros e filmes sobre a época, a luta contra o regime contou com a resistência de mulheres e homens negros de várias partes do país e de figuras consideradas míticas por parte da população brasileira.

Ao mesmo tempo, o governo dos militares via com reservas o movimento negro e chegou a colocar arapongas para vigiar militantes.

Segundo Andersen Figueiredo, mestre em História da África pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), integrantes do movimento negro de Salvador eram perseguidos e tinham reuniões vigiadas. Em livro sobre a época, Figueiredo demonstra como a polícia usava pessoas infiltradas no movimento para monitorar os passos dos militantes.

“Para os militares, o movimento negro era subversivo, pois ia contra o projeto do regime ao dizer que no Brasil existia racismo”, afirma.

As reuniões do movimento tratavam da situação marginal dos negros e de como eles poderiam se inserir na sociedade em um processo político de reconstrução democrática.

Os encontros eram clandestinos e tinham, normalmente, poucos participantes devido ao medo. Para se proteger, os militantes adotavam estratégias como a comunicação por códigos.

Apesar de importante no processo de resistência em Salvador, a história de homens e mulheres negras no enfrentamento ao racismo e à ditadura é pouco contada no relato oficial. “A história é eurocêntrica. O que passaram para gente foi o relato dos heróis brancos”, afirma Figueiredo.

De acordo com Janailson Macêdo Luiz, professor da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará) e doutor pela USP (Universidade de São Paulo) em história social, a resistência se dava não só a partir de movimentos políticos, mas também por meio de iniciativas culturais. O Ilê Aiyê, na Bahia, e festas de soul music no Rio de Janeiro, por exemplo, eram malquistos e até monitorados pela ditadura.

“Tinham uma conscientização social, visão crítica e autônoma que não se submetia a uma perspectiva conservadora”, afirma Luiz. Segundo o pesquisador, o movimento negro era tido como um inimigo interno que podia desestabilizar as ideias de Brasil impostas pelo regime.

Além de figuras anônimas que atuaram na resistência à ditadura, Luiz destaca a atuação dos guerrilheiros Osvaldão e Dina Teixeira.

Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, era vinculado ao PC do B, campeão de boxe amador e líder na Guerrilha do Araguaia (1972-74). Parte da população que vivia na região do confronto o considerava uma espécie de figura mítica, pois sua habilidade de sobreviver em um cenário de combate adverso era assimilada a partir de elementos religiosos locais, como a encantaria.

“Esses referenciais ajudavam a entender como Osvaldão conseguia enfrentar um batalhão do Exército e sair vivo. Pensavam: ‘É porque se encantou. Conseguiu se transformar em um animal e fugir'”, afirma Luiz.

Assim como Osvaldão, a geóloga baiana Dinalva Teixeira lutou na Guerrilha do Araguaia, onde exerceu funções de parteira e professora. O respeito às habilidades praticadas junto à população fez com que também fosse encarada como uma figura mítica. Segundo crenças locais, ela era capaz de se transformar em borboleta ou desaparecer ao vento, enquanto Osvaldão podia virar animais como cachorro ou o “capelobo”, personagem monstruoso do folclore brasileiro.

Para Tauana Gomes Silva, doutora em história pela Université Rennes 2, na França, em cotutela com a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), a participação de pessoas negras e indígenas foi apagada do discurso histórico de construção da nação brasileira.

“Apesar de pessoas negras se mobilizarem desde sempre, são mostradas como passivas no processo histórico”, afirma.

Segundo ela, a contribuição de mulheres negras na resistência é ainda mais invisibilizada, uma vez que enfrentam o sexismo e o racismo. A pesquisadora cita mulheres importantes que fizeram parte da resistência ao regime militar, como Maria Diva de Faria e Thereza Santos.

“A Maria Diva, por exemplo, ajudou grandes personagens que hoje são conhecidos. Acolhia as pessoas em casa e dava apoio estrutural para que tivessem onde dormir e o que comer. Hoje, pessoas que ela acolheu [como o político e sociólogo Paulo Stuart Wright] são conhecidas, mas ela não”, diz Tauana.

A goiana Maria Diva foi presa em 1973 e torturada pelo regime. Foi empregada doméstica na adolescência, formou-se em enfermagem e depois se tornou funcionária pública. Mudou-se para São Paulo, onde foi simpatizante da organização de esquerda Ação Popular. Ela faleceu em 2018.

A atriz carioca Thereza Santos foi presa em 1969, exilou-se em 1974 na África e participou como guerrilheira do movimento de libertação de Guiné-Bissau e de Angola. No Brasil, foi ativa em movimentos contra o racismo e o sexismo. Thereza faleceu em 2012.

ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress

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