FOLHAPRESS – Antes de tudo, “Até o Cair da Noite” nos ensina como pôr em cena uma personagem transexual sem fazer nenhum alarde disso. Quer dizer, a personagem entra, não há juízo moral em torno de sua identidade de gênero, não se condena ou exalta, ela não tem nada de “típico”, não se veste escandalosamente e outras coisas que emperram tantos filmes.
Passemos. “Até o Cair da Noite” é um filme de duplicações, onde nada ou ninguém é uma coisa só, a começar por Leni Malinowski, a transexual em questão sim, isso é um problema para ela. Mas seu namorado, Robert Demant, é um policial em missão secreta, que deve se passar por civil para capturar um traficante que age online e a salvo de qualquer ação policial.
Se ficasse nisso as coisas seriam simples. Mas Leni estava presa e é tirada da cadeia para que ajude na captura de Victor, o bandido cibernético em questão. Em vista disso, Leni e Robert se reencontram depois de um longo tempo. Ele não a visitava na prisão, pois quando começaram a namorar ela se identificava como homem, e ele tinha fortes conflitos com isso, então não a visitava. Disso ela se ressente.
Com a ajuda de Leni, Robert consegue chegar em Victor e iniciar uma espécie de amizade. Ou seja, estamos numa ação característica de filme noir. Haverá trapaça e traições, riscos e agonias. Não são poucos os momentos em que é difícil saber quem está associado a quem ou quem é inimigo de quem. Os personagens parecem ser duplos. Suas ações são sempre ambíguas. Este é, no fim, um bom exemplar de filme de detetives.
Também como gênero o filme se desdobra. De repente passamos do policial ao drama romântico, ao melodrama. Deixamos de lado a caça a Victor e somos lançados às alegrias e infortúnios do amor entre Leni e Robert. Entramos numa tradição em que os cineastas alemães têm muito a dizer, de Max Ophuls e Douglas Sirk a Fassbinder.
Em termos de sexualidade estamos no território de Fassbinder, é evidente. Mas entre Leni e Robert os arroubos de amor e ódio, as rupturas e reencontros se darão em tons baixos, sem grandes escândalos, com choro, mas contido.
O melodrama se desenrola quase todo o tempo em ambientes claros e tranquilos, como se se opusessem à ardência e à ambiguidade das relações entre Robert e Leni. Ali as sutilezas estão presentes desde a tentativa de fuga de Leni. Ela tenta escapar ao controle de Robert, o tira, não de Robert, o amante. Uma tornozeleira faz a diferença na vida de uma pessoa, e ela sabe disso. Sua liberdade nunca será mais que condicional.
A parte policial, ao contrário do melodrama, é sombria como Robert, tem jeito de sujeira, de ralé. Esse contraste também rebate nos personagens. Robert é quase um tipo expressionista, enquanto Leni remete à figura da “vamp” na tradição de Marlene Dietrich.
Também Victor é uma composição interessante, pois a personagem é uma mistura de ingenuidade a mulher dele acha que ele é burro e só, cautela e engenho. O porte e a expressão nada têm em comum com o do criminoso tradicional. É como se tudo nele fosse um bom disfarce.
É, aliás, em vista do caráter pouco exposto de Victor que a investigação começa nesse belo filme de Christopher Hochhauser, em que, à moda de Céline, os personagens se afundarão até o fim da noite.
ATÉ O CAIR DA NOITE
– Avaliação Ótimo
– Onde Nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Ioana Iacob, Aenne Schwarz e Gottfried Breitfuss
– Produção Alemanha, 2023
– Direção Christoph Hochhäusler
INÁCIO ARAUJO / Folhapress