FOLHAPRESS – Sem falas nos primeiros 27 minutos, não muito falado depois disso, “Music” apresenta uma virada na poética da diretora alemã Angela Schanelec. Nas primeiras cenas está a chave para a compreensão do filme.
Começa com nuvens ocupando uma paisagem montanhosa da Grécia. A tela é então tomada pela escuridão. Um jovem chora enquanto carrega o corpo de uma mulher, presumivelmente morta. Em seguida, um homem idoso acorda o mesmo jovem de antes, já pela manhã. Ele está com as roupas sujas de sangue.
Ambulâncias chegam e um bebê é resgatado e, então, adotado. Após um corte seco, avançamos no tempo para o conhecer. Jon, ao se defender do assédio de um outro rapaz, o empurra e o mata sem querer. Crime culposo que acontece fora de quadro, mas com testemunhas. Na prisão, Jon conhece a carcereira Iro, com quem tem uma filha.
Cinéfilos que viram o filme nos festivais europeus, principalmente no Festival de Berlim, onde “Music” ganhou o Urso de Prata de melhor roteiro, comentaram decepcionados a sinopse divulgada na ocasião, segundo a qual o filme seria uma releitura contemporânea de “Édipo Rei”.
Segundo os queixosos, não há qualquer pista vinda do filme que remeta à tragédia grega. A sinopse então pareceria uma bula que o espectador precisa ler para não ficar no escuro. Convenhamos, se isso for um problema, boa parte do “cinema de poesia” vai para o ralo. Ainda mais porque, como diria Susan Sontag, o filme funciona muito bem sem que o interpretemos como releitura de Sófocles.
O estilo parece o de alguns filmes que reagiam ao cinema de fluxo no começo deste século. Algo semelhante ao que Lucrecia Martel e Eugène Green faziam no início dos anos 2000.
Temos uma encenação rígida, em que os enquadramentos não obedecem a uma correção natural para melhor contemplação da ação e dos personagens. Por vezes, alguém sai de quadro sem que a câmera o acompanhe.
Schanelec desconcerta pelas elipses que fazem o tempo progredir numa dinâmica ousada, enquanto o tempo interno de seu filme é mais lento, contemplativo, criando um curto-circuito de registros.
Por essas elipses, poderíamos pensar em “Muriel”, obra-prima realizada por Alain Resnais em 1963, aumentando o caldeirão referencial tão constante no cinema contemporâneo. Nos dois filmes, episódios de uma vida se enfileiram sem hierarquia. Vemos uma sucessão de acontecimentos, drásticos ou corriqueiros, dispostos com igualdade de tom.
Pedaços de uma vida flagrados por uma câmera atenta.
A diretora se abre ainda a pequenos detalhes da natureza, como na imagem em que um pequeno lagarto parece querer evitar uma tragédia. Ou a cabeça de um animal que aparece logo que o homem retira o bebê da casa no início.
Tudo em “Music” remete a uma tentativa de fuga do trivial. Até mesmo a sua estrutura de oposições, que contribui para um certo estranhamento que a diretora põe em cena com um talento notável.
MUSIC
– Avaliação Muito Bom
– Quando Estreia nesta quinta (4) nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Aliocha Schneider, Agathe Bonitzer, Marisha Triantafyllidou
– Produção Alemanha, França, Grécia, Sérvia, 2023
– Direção Angela Schanelec
SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress