SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ziraldo sempre disse que escrever e desenhar um livro são como gerar e criar um filho. Depois da morte, aos 91 anos, do poeta, designer de primeira, também cartunista, jornalista e cronista que ele foi, sua obra, mais do que nunca, pertence a todos os brasileiros, integra o inventário simbólico do país.
O autor do personagem Menino Maluquinho inventou um padrão visual e um estilo de escrever para o público infantil –nisso reside a principal contribuição para a formação da criança que tinha entre cinco e 12 anos entre 1966 a 1980.
Onde atuou, o artista deixou marca própria e original. “O Pasquim” é considerado o principal jornal crítico da contemporaneidade. Ziraldo foi preso político pelo conjunto de edições e produção no semanário, veiculado durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Entre os intelectuais que o criaram destacam-se Paulo Francis, Millôr Fernandes, Jaguar, Luís Carlos Maciel. Nesse momento, o texto vale tanto quanto o cartum, que fala mais alto em tempos de vozes silenciadas, exílios e prisões.
A partir da “A Turma do Pererê” (1961) e em forma de histórias em quadrinhos, Ziraldo deu início à revisão da literatura infanto-juvenil que se produzia na nação. Leitor de Monteiro Lobato (1882-1948), mas fã mesmo de Machado de Assis (1839-1908), o autor cumpriu a fase da releitura dos mitos difundidos às crianças.
Com isso, pôs em cheque o imaginário brasileiro durante pelo menos 50 anos, já que o gibi se transformou em coleções de livros adquiridos pelo governo para escolas públicas. A lenda sincrética do saci convive com a figura da onça e do índio brasileiros e com a tartaruga das fábulas herdada do Oriente.
Os personagens são ainda pretextos para o autor opinar sobre a humana forma de viver de seu tempo, transporta-os para o ambiente contemporâneo, com preocupações éticas e ecológicas.
Na esteira das fábulas e crônicas com animais, nasceu “O Bichinho da Maçã”, ponte para a produção intelectual de Ziraldo para adultos, já que o personagem é um contador de piadas e retoma a linguagem dos cartuns, que deu ao jornalista notoriedade em “O Pasquim”.
Segue-se, então, sua obra-prima, “Flicts” (1969), combinação apropriada entre a concepção de livro ilustrado e logotipos industriais, que entravam na poesia como um tipo especial de vocábulo. Aliada à nova forma, versos representam a tristeza de um menino-cor, à procura de seu lugar no mundo.
Depois veio a crônica-cartum-poema “O Menino Maluquinho”, traduzido até em catalão. Intimista, o livro destaca a tristeza lírica da criança diante da separação dos pais, hoje lugar-comum no cotidiano infantil.
O trânsito pelo trabalho publicitário transferiu saberes para o campo da crônica poética na produção infantil.
Ziraldo virou campeão de vendas e nunca mais saiu de cartaz, em livros, filmes, gibis, peças de teatro, tudo isso a partir dos desdobramentos da obra em curso.
É cedo para avaliá-la. A obra dá-se a ver por inteira agora e exige revisão. Por que ele não foi escolhido para a Academia Brasileira de Letras? Por que não entrou nas antologias de poesia, como reconhecimento pelas instâncias legitimadoras, e permanece restrita ao universo supostamente inferior da literatura infantil, com mais de 150 livros publicados?
Antes o poeta-pintor fosse eterno, pois não há tristeza que cesse diante da morte de Ziraldo. Parafraseando a frase de Roberto Carlos a Caetano Veloso: “Artista nunca envelhece”. Por que tem de morrer?
Há uns tempos, chegou a dizer disparates em opiniões à mídia, porque conquistou o direito de revelar o que considerava a crueza de um regime social, político e econômico mais injusto do que em seu tempo de juventude. Repetiu como papagaio que os pais hoje deixam as crianças “mais burras e submissas”. Que isso sirva a todos de lição e fique como herança de quem nunca teve medo de lutar por um Brasil humano.
MÔNICA RODRIGUES DA COSTA / Folhapress