SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O palestino com cidadania brasileira Ramadan Hasan Abdou, 29, teve de tomar a decisão mais difícil de sua vida dias após o início da guerra entre Israel e Hamas. Depois de escapar da morte em um bombardeio que destruiu a sua casa, embarcou de volta ao Brasil no primeiro grupo de repatriados pelo governo federal, mas deixou para trás três de seus filhos. As crianças não tiveram autorização da mãe para viajar e ainda hoje estão sob risco na Faixa de Gaza.
Com seis meses de guerra, completados neste domingo (7), Abdou tenta se adaptar à nova rotina, mas afirma que a cada dia a angústia aumenta. A mãe das crianças, sua ex-mulher, está desaparecida desde que outro ataque devastou o prédio em que ela estava abrigada. Os filhos agora vivem com duas tias em condições precárias numa tenda na cidade de Rafah, o único grande centro urbano que Tel Aviv ainda não invadiu por terra.
“As crianças [em Gaza] estão morrendo de fome. Eu costumo dizer que os animais agora vivem melhor do que as pessoas”, diz Abdou, que mora em um apartamento alugado em São Paulo com a atual mulher e outros dois filhos. “Há muita dor no meu coração. Não tenho paz. Meus filhos lutam contra a morte minuto a minuto.”
Outros repatriados de Gaza, que tentam reconstruir a vida no Brasil, relatam sofrimento semelhante. Eles alternam trabalho, aulas de português e sessões de atendimento psicológico com o noticiário do conflito.
Segundo o Itamaraty, 115 brasileiros e familiares foram retirados de Gaza desde outubro passado. Os últimos quatro deixaram o território palestino em 8 de fevereiro e chegaram a São Paulo em um voo comercial.
Atualmente, 32 palestinos-brasileiros e familiares repatriados estão na Vila Minha Pátria, em Morungaba, a cerca de 100 km de São Paulo. O espaço é administrado pela Convenção Batista Brasileira, uma associação cristã de igrejas batistas, para abrigar refugiados e imigrantes. Hoje, o local acolhe 147 pessoas, a maioria afegãos.
Jennifer Soares, coordenadora do Vila Minha Pátria, diz que o governo federal os procurou após o início da guerra para solicitar o acolhimento dos oriundos de Gaza. A maior parte dos repatriados chegou em novembro, e o projeto prevê que eles permaneçam no local por pelo menos seis meses.
Uma equipe de voluntários trabalha para que o grupo conquiste autonomia e se integre socialmente. De segunda a sexta-feira, adultos e crianças têm pelo menos duas horas de aulas de português. Os menores, que frequentam a escola municipal, fazem lições de reforço para conseguirem acompanhar os colegas de classe.
De tempos em tempos, o grupo participa de oficinas de artes e atividades esportivas. Com 170 mil metros quadrados, o Vila Minha Pátria tem piscina e quadras de futebol, vôlei, basquete e tênis. Rodas de conversa e palestras são organizadas para que os repatriados possam compartilhar dores e lidar com o estresse pós-traumático.
O palestino Mohammad Farahat, 43, disse ter sido bem recebido, mas afirma que o processo de adaptação não tem sido fácil. “Quando chegamos, foi muito, muito ruim. É uma experiência nova no Brasil. E o pano de fundo é o sangue, a guerra, porque deixamos nossos entes queridos em Gaza. Eles ainda estão sofrendo. Estávamos na escuridão porque deixamos tudo para trás: familiares, nossa casa, nossas fotos”, diz ele, cuja esposa e filhos têm nacionalidade brasileira. “Mas, gradualmente, estamos lidando com isso.”
Preocupado com a situação de amigos e parentes em Gaza, Farahat também manifesta receio com a situação da própria família no Brasil. Ele se diz assustado com o alto custo de vida e com poucas oportunidades de emprego em Morungaba, que em 2022 tinha menos de 13,7 mil habitantes, segundo o IBGE. “Não podemos comprar os remédios que não são oferecidos pela rede de saúde, nem roupas. O aluguel de casas não é acessível. Vai ser desafiador encontrar um emprego adequado para garantir um futuro sustentável à minha família.”
Farahat pede ajuda para que seu filho continue o curso de multimídia, interrompido pela guerra em Gaza. A coordenadora Jennifer Soares afirma que a qualificação profissional costuma ser motivo de frustração para imigrantes e refugiados. Em dois anos de projeto, nenhum diploma dos atendidos pelo serviço foi revalidado em território brasileiro.
Os repatriados de Gaza estão incluídos no Bolsa Família. Eles também têm acesso a atendimento psicológico da rede municipal, mas apontam problemas: nem sempre existe um tradutor de árabe e, quando há, pacientes se sentem inibidos com a presença de mais um profissional além do psicólogo.
Cidadãos que já tinham uma vida estabelecida no Brasil antes da guerra também lidam com mudanças. Monir Bader, 39, viajou a Gaza para visitar familiares e acabou encurralado na guerra. De volta, decidiu abandonar a profissão de motorista de aplicativo e passou a vender comida árabe feita em sua casa para passar mais tempo com a família.
Ainda hoje, conta Bader, os filhos de 12, 10 e 5 anos se assustam quando ouvem fogos de artifício. “E os meus sogros estão sofrendo porque estão aqui, mas os filhos deles estão lá. Minha sogra chora o dia inteiro.”
Palestinos-brasileiros fazem campanha para governo brasileiro resgatar parentes
Diante da iminência de Israel iniciar uma ofensiva terrestre de larga escala em Rafah, no sul de Gaza, alguns palestinos-brasileiros começaram uma campanha para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resgatar os familiares que continuam no território palestino.
O movimento é encabeçado por Hasan Rabee, que ficou conhecido ao filmar os ataques israelenses em Gaza e compartilhar nas redes sociais sua rotina pela sobrevivência. Ele e outros repatriados mantêm contatos diários para trocar informações sobre o conflito e a situação dos parentes que estão na zona de guerra.
Rabee viajou a Brasília no mês passado para apresentar a autoridades uma lista de 104 familiares que permanecem em Gaza. “O documento era bem maior e tinha mais ou menos 150 nomes. Mas, a cada semana, a lista vai diminuindo porque as pessoas estão morrendo. Quantos vão restar?”, questiona Rabee, que viajou acompanhado de duas advogadas e da presidente de uma ONG.
Ele afirma ter se reunido com representantes dos ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e dos Direitos Humanos, mas diz não ter conseguido avanços concretos nas tratativas para novas operações de resgate.
Apesar da crise humanitária em Gaza, o governo Lula decidiu que não dará autorização de residência ou visto temporário para fins de acolhida humanitária a palestinos de Gaza com o argumento de evitar uma nova “nakba”. A palavra, que significa catástrofe ou desastre em árabe, faz referência à diáspora forçada de palestinos no fim da década de 1940.
Rabee e outros repatriados de Gaza pedem que o governo conceda o visto para reunião familiar, documento que facilita a entrada no Brasil dos parentes de um refugiado reconhecido pelo Estado brasileiro. O pedido, porém, tampouco avançou.
“Mas eu não vou sossegar”, diz ele. “A gente está bem, mas a nossa cabeça, a nossa mente e o nosso coração estão com a nossa família em Gaza.”
RENAN MARRA / Folhapress