SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem certifica uma obra de arte? Na semana passada, uma pintura atribuída a Tarsila do Amaral e apontada por especialistas como falsa deixou colecionadores e herdeiros da artista alarmados.
Primeiro, porque a tela com casas e coqueiros, uma paisagem tipicamente brasileira que seria da fase “Pau-Brasil” de Tarsila, foi vista por pouquíssima gente. Apesar de estar à venda por R$ 16 milhões na SP-Arte, a maior feira do ramo no país, a obra não estava exposta, mas guardada numa mala.
Segundo, porque o proprietário da pintura, um homem de 60 anos com sobrenome da elite paulistana, que prefere não se identificar, não mostrou documentação relativa ao histórico do quadro. Ele conta ter trazido a obra para o Brasil há pouco, depois de ela ficar com sua família no Líbano pelos últimos 50 anos.
Por fim, porque a tela em disputa, datada de 1925, não consta do catálogo raisonné de Tarsila, tido como referência para as galerias e os museus por reunir todos os 2.318 desenhos e pinturas conhecidos da modernista.
A história com roteiro cinematográfico levanta a questão do papel dos herdeiros na hora de determinar a autoria de trabalhos da pintora mais cara do país. E caiu como uma bomba na família Amaral, envolvida há cinco anos numa disputa pelo comando dos direitos autorais da mãe de “Abaporu”.
Quando morreu, em 1973, aos 86 anos, Tarsila não deixou filhos nem cônjuge. Em 2005, seu espólio passou a ser administrado pelos sobrinhos-netos Tarsila do Amaral, conhecida como Tarsilinha, de 59 anos, Paulo do Amaral Montenegro, 66, Luís Paulo do Amaral, 57, e Heitor do Amaral, 65.
Juntos, eles criaram uma empresa para licenciar produtos e exposições sobre a artista e dividir os lucros entre os numerosos 57 herdeiros da pintora.
Até mais ou menos 2020, Tarsilinha negociava as parcerias comerciais e as exposições, atuando com o aval dos outros três sócios. O dinheiro advindo dos royalties era dividido igualmente entre os quatro, e, além disso, Tarsilinha recebia 10% do faturamento como pagamento por administrar a empresa. Os sócios se encarregavam de repassar os valores que entravam às outras dezenas de herdeiros.
Se hoje a marca Tarsila estampa camisetas, bloquinhos, chinelos e serve de inspiração para brincos de quase R$ 40 mil, isto se deveu à construção da imagem da pintora como ícone pop por anos, durante os quais os valores dos licenciamentos não eram tão significativos.
Tarsilinha conta que “as empresas não queriam fazer licenciamentos de artistas plásticos, queriam fazer da Xuxa, do Mickey, que era o que dava Ibope”. Paulo, outro dos sobrinhos-netos, afirma que em certas épocas pingavam em sua conta bancária R$ 1.500 de quatro em quatro meses.
No caso de produtos caros, como a coleção de roupas da Osklen e as joias da Sauer inspirada em Tarsila, as vendas não eram volumosas o suficiente para se reverter em faturamento gordo para os herdeiros, acrescenta Paulo.
O dinheiro começou a fluir com as vendas das pinturas “A Lua”, para o Museu de Arte de Nova York, o MoMA, em 2019, por um valor estimado à época em R$ 74 milhões, e “A Caipirinha”, leiloada no ano seguinte pelo marchand Jones Bergamin por R$ 57,5 milhões.
Comprada por um colecionador, a tela de 1923, considerada um abre-alas do modernismo, se reverteu em R$ 570 mil para os herdeiros, pelo cálculo de Tarsilinha. “Foi o primeiro dinheiro grande que entrou. Dali para a frente eu sabia que os valores dos licenciamentos iam aumentar”, diz Tarsilinha.
Embora nem “A Lua” nem “Caipirinha” fossem da família, os Amaral receberam pelas vendas graças ao direito de sequência. Trata-se de uma lei pela qual ao menos 5% do valor da comercialização de uma obra de arte deve ser revertido para o artista, caso esteja vivo, ou para seus herdeiros. Em outras palavras, se a autoria da pintura agora em questão se confirmar, a família vai embolsar uma bolada.
É importante destacar que os proventos advindos do direito de sequência vão direto para as contas dos herdeiros, sem passar pela empresa gestora dos direitos autorais de Tarsila, porque não são royalties. Cada um dos 57 herdeiros recebe uma porcentagem estipulada em contrato.
Foi depois da venda dessas duas pinturas que a discórdia se instalou entre os parentes. Tarsilinha relata que a partir daquele momento os três outros sobrinhos-netos passaram a querer participar ativamente da administração dos direitos autorais de sua tia, pelos quais pouco se interessavam. Segundo Tarsilinha, Paulo, Luís Paulo e Heitor começaram a excluí-la das decisões, não a deixavam mais assinar os contratos sozinha, como fazia até então, e tramaram para dar um golpe e removê-la do comando do negócio.
Paulo afirma que de fato os familiares quiseram se aproximar dos negócios à medida que o sucesso de Tarsila crescia. Se antes Tarsilinha assinava os contratos sozinha, ele diz, agora era necessária a aprovação de ao menos um outro sócio. Mas ele nega que tenha havido golpe, dado que os royalties eram divididos em proporções iguais para os quatro sócios e que Tarsilinha recebia mais 10% por estar à frente da empresa.
Paulo acrescenta ainda que a decisão de deixar a empresa foi de Tarsilinha ela renunciou numa carta em 2022. “Não existe golpe. Existe golpe de Estado, que você tira o presidente da República. Vitimismo é a expressão correta. Ela saiu do castelo e agora fica jogando pedra no castelo”, ele afirma.
Um ponto central da desavença entre os Amaral é um rombo de R$ 1,5 milhão que Tarsilinha teria deixado na empresa, devido à sua contabilidade falha. O valor, segundo Paulo, foi constatado por uma auditoria que analisou as contas do negócio nos últimos cinco anos com correções, o buraco hoje soma R$ 2,2 milhões.
O valor é agora cobrado na Justiça pelos outros três sócios. Eles moveram um processo contra Tarsilinha pedindo a ela que explique o destino do dinheiro ou então o devolva para a família. Paulo faz um mea culpa. “Nós fomos de certa forma negligentes nesse aspecto de deixar ela [Tarsilinha] sozinha gerindo a companhia. E foi assim pelos três sócios”, ele diz.
Tarsilinha conta outra história. “Eles me acusam de uma coisa gravíssima. Eles sempre tiveram acesso às contas da empresa, à gerente e ao contador. Imagina. Isso tudo vai ser provado. Meus advogados estão conduzindo isso para mostrar para o juiz”, afirma ela.
Em outro processo, os três herdeiros acusam a sobrinha-neta de concorrência desleal. De acordo com Solano de Camargo, o advogado deles, Tarsilinha teria fechado negócios paralelos envolvendo os direitos da pintora por outra empresa que não a da família. “É como se ela estivesse concorrendo com a própria família e ficando com o dinheiro só para ela”, afirma o advogado.
Tarsilinha nega a acusação. Ela diz usar sua outra empresa, a Manacá, para escrever livros, fazer palestras e curadorias sobre sua tia-avó com o conhecimento acumulado em décadas de estudo da obra da artista.
O advogado dos três herdeiros, por outro lado, cita um caso em que Tarsilinha usou a empresa paralela para atividades de competência do negócio da família. Em 2015, ela firmou, via Manacá, um contrato com o Theatro Municipal de São Paulo para duas exposições nos espaços do teatro.
Uma trataria da vida de Tarsila e outra teria obras suas do acervo de Tarsilinha, como alguns desenhos e objetos diversos. Contudo, ambas as mostras acabaram não acontecendo e o contrato, no valor de R$ 495 mil, foi desfeito.
A Prefeitura de São Paulo abriu um inquérito para averiguar o caso, no âmbito de uma série de investigações de irregularidades na gestão do Theatro Municipal à época. O resultado foi a condenação de Tarsilinha por corrupção, em 2019. A sentença determina que ela deve ressarcir os cofres públicos num valor hoje próximo de R$ 200 mil.
Em relação a este caso, Tarsilinha afirma que foi vítima de um golpe dos gestores do teatro. Seu advogado, Arystóbulos Freitas, argumenta que ela “errou na resolução do golpe” e agora conversa com a prefeitura paulistana para pagar e resolver a pendência. Os gestores do teatro à época foram condenados.
A sentença por corrupção serviu de munição para os outros três herdeiros, que entraram com mais uma ação contra Tarsilinha, por danos morais pelo uso indevido da imagem da pintora em situação fraudulenta. Eles pedem R$ 100 mil de indenização.
“Este processo não tem sentido. Eles sabem que ela [Tarsilinha] sofreu um golpe, que não foi beneficiada. Eles sabem que não houve nenhum prejuízo para as obras [de Tarsila]. Mas preferiram entrar com um processo como forma de acirrar a guerra contra ela”, argumenta o advogado de Tarsilinha.
Ele sustenta que os sobrinhos-netos estão numa luta agressiva contra a ex-sócia porque viram uma oportunidade de ganho com as obras de Tarsila, agora avaliadas em dezenas de milhões, e querem tirar Tarsilinha da jogada. “Eles começaram uma guerra processual contra ela. É uma coisa desproporcional”, diz o advogado.
A defesa dos três sobrinhos-netos rebate, afirmando que o acúmulo de ações na Justiça evidencia as atitudes “desastrosas e criminosas” de Tarsilinha.
Em meio às desavenças, Tarsilinha profunda conhecedora da obra tia, que ajudou a negociar as exposições da artista no MoMA e no Masp, o Museu de Arte de São Paulo deixou a empresa da família. Quem assumiu o comando foi Paola Montenegro, filha de Paulo e sobrinha-bisneta de Tarsila.
Paola havia sido contratada pela própria Tarsilinha em 2021 para cuidar das redes sociais e do site oficial da pintora. Com 29 anos e um diploma de propaganda, ela passou a dar a palavra final nas exposições e produtos de Tarsila.
DJ de música eletrônica nas horas vagas em baladas descoladas de São Paulo, Paola diz que seu objetivo é aproximar os jovens da obra de Tarsila e “preservar o legado e a brasilidade” de sua tia-bisavó.
Para isso, afirma pensar em mostras para crianças ou “imersivas e diferentes”, além de planejar uma exposição comemorativa para o centenário de “Abaporu” em 2028. Em paralelo, trabalha nos detalhes de uma exposição de Tarsila no Musée du Luxembourg, em Paris, a partir de setembro, conjunto de obras que no ano que vem será exibido no Guggenheim de Bilbao.
Segundo Paola, o faturamento com direitos autorais da pintora foi de R$ 600 mil no ano passado, soma que ela quer aumentar em 30% neste ano. Há sete parcerias comerciais firmadas para 2024, das quais o lançamento de uma linha de camisetas pela marca Chico Rei foi a primeira.
Em relação à pintura com a autoria em disputa, Paulo, seu pai, conta que a família ficou muito preocupada “porque existe muita falsificação de obras rondando o mercado de arte”. Ele afirma desconhecer o quadro e só ter descoberto sua existência pela reportagem da Folha. Por estes motivos, não pode afirmar se é ou não de Tarsila.
Os herdeiros contrataram um respeitado perito, Douglas Quintale, para certificar a autoria do quadro e de outros trabalhos que vierem a ter a autenticidade questionada, como uma série de desenhos agora na Justiça. O propósito, diz Paulo, é estabelecer um método para transferir à família a palavra final do que é ou não Tarsila.
Hoje, esta prerrogativa está com a comissão que organizou o catálogo raisonné e que inclui Aracy Amaral, tida como a maior especialista do país na obra da pintora. O colegiado, contudo, não se reúne há mais de dez anos para avaliar trabalhos atribuídos à Tarsila que vieram à tona após a publicação do livro, em 2008.
O dono da tela e o galerista que levou a obra para o mercado, Thomaz Pacheco, da galeria OMA, estão seguros da autenticidade.
Ainda é incerto se o cenário de incertezas pode afetar a trajetória ascendente da obra da artista. O certo é que, desavenças à parte, a família Amaral concorda quanto à importância do legado sob sua responsabilidade.
“Mais importante é a divulgação da obra do que o dinheiro. A gente quer fazer da Tarsila do Amaral uma Frida Kahlo”, afirma Paulo, em referência à artista símbolo do México. Tarsilinha segue esta lógica. “As pessoas olham para um quadro dela e têm orgulho de ser brasileiro”, ela diz. “Mais ou menos como era com o Ayrton Senna.”
JOÃO PERASSOLO / Folhapress