No Rio, todo dia matam uma Marielle, diz ex-chefe da Polícia Civil

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – ‘‘A polícia é corrupta. É uma instituição que foi criada para ser violenta e corrupta’’. A afirmação feita no documentário ‘Notícias de uma Guerra Particular’ (1999) veio do então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o delegado Hélio Luz, hoje com 78 anos.

Passados quase 30 anos e um mandato de deputado estadual pelo PT (1999-2002), Luz vive hoje em Porto Alegre, mas mantém sotaque carioca, contatos com colegas da polícia no Rio e a mesma visão. É a partir deles que avalia a investigação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

No último dia 24, a Polícia Federal prendeu três suspeitos de serem mandantes do crime, depois de acordo de delação com Ronnie Lessa, apontado como executor —o conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do Estado), Domingos Brazão, seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido) e o delegado Rivaldo Barbosa, recém-nomeado chefe da Polícia Civil na época do crime.

As defesas de todos eles negam envolvimento de seus clientes com o caso.

Na entrevista à Folha, Luz cita ainda a ligação de Lessa com Rogério Andrade, apontado como um dos líderes do jogo do bicho no estado. A defesa dele tem negado as acusações.

Luz diz que o apelido Xerife da Esquerda, que recebeu nos tempos na polícia e virou título de um livro, o deixa desconfortável. ‘‘Sou um cidadão que foi delegado’’.

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Pergunta – Entre os supostos mandantes, a família de Marielle e o ex-deputado Marcelo Freixo se disseram surpresos com o nome de Rivaldo Barbosa. E o senhor?

Hélio Tavares Luz – Polícia não fica surpresa com nada, tudo pode acontecer. Essa história que surge com a delação do Lessa… O Lessa integra o jogo do bicho. Ele é colado com o Rogério Andrade, um dos chefes, não do jogo do bicho no Rio de Janeiro, mas no Brasil. Os banqueiros do bicho no Rio têm controle do jogo no Brasil inteiro. Pega uma descarga, que é como se fosse um resseguro, e cada um faz de um estado: um da Bahia, outro do Acre, por aí vai.

P.- Quando o sr. diz ‘descarga’ quer dizer o quê?

H. T. L. – Fazem um jogo, vamos supor, R$ 10 mil, o banqueiro que está no Acre segura R$ 2.000 e repassa R$ 8.000 para a descarga, porque não pode bancar sozinho. Ser nível nacional é um dos requisitos para crime organizado: nível nacional, área determinada, e inserido nas instituições nacionais. Crime organizado neste país é o jogo do bicho do Rio de Janeiro. Estou colocando isso para saber onde estamos pisando. O Lessa é um fio desencapado, de alta voltagem. O cara foi do Bope, é profissional. O outro é o Domingos Brazão. O avô dele tinha controle de Jacarepaguá, não chegou ontem. São figuras que podem fazer algo.

A PF diz que [o delegado] é corrupto. É possível. Mais do que isso, tem que ter prova. Está bem escrito o relatório? Está, dá para fazer um livro, mas cadê a prova?

P.- Algo poderia ter sido diferente para se chegar a respostas antes?

H. T. L. – Não sei. Investigação quando você começa e diz ‘vai sair um tigre’, já está furada. Você não sabe a figura que vai aparecer, vai juntando as peças [do quebra-cabeça]. Na última, você diz se é um tigre. Fora isso, é chute.

P.- O sr. acha que a figura não está clara?

H. T. L. – De repente, pode ter uma tromba. Hoje em dia a ciência está evoluída (risos). Eu vejo com reservas. A autoria está determinada, sobre ela não há dúvida.

P.- E a motivação?

H. T. L. – Não há homicídio sem motivo. Pode ser motivo fútil, mas é motivo. Marielle era uma mulher negra, da Maré, favelada, isso é a motivação para mim. No Rio de Janeiro, todo dia matam uma Marielle, temos que levar às últimas consequências essa investigação. Não pode ficar pelo meio. Marielle é um símbolo. 60% dos brasileiros vivem com até um salário mínimo, ou seja, 129 milhões de pessoas, 20 milhões têm renda mensal de até R$ 300. E o outro lado? São 17,4 milhões que ganham acima de três salários mínimos. Esse é o motivo de a Marielle estar morta, essa desigualdade seríssima que temos. Quem segura isso? A origem desse país é a escravatura. É um país construído por escravos.

P.- Essa sua fala ecoa a de ‘Notícias de uma guerra particular’, quando era chefe da Polícia Civil. O que mudou desde então?

H. T. L. – De 1997 para cá não mudou nada. Tem uma classe média branca que quer criar uma ilusão. Acha que são 129 milhões de idiotas [esse é o número da população que vive com até um salário mínimo, de acordo com o IBGE] ? Não, e quem segura? O sistema de segurança —polícias e Forças Armadas. Esse é o jogo.

P.- E onde entra a corrupção?

H. T. L. – Aí não é voltar a 1997, é 1808. Desde que dom João 6º chegou aqui, e criou a Intendência de Polícia aos moldes do que tinha em Portugal. Criou o controle social feito pela polícia, pelo Judiciário e pelo sistema penitenciário. Esses três são encarregados de manter o controle. Onde está a corrupção? Sem corrupção, isso não existe. A corrupção está dentro da estrutura do Estado. Se não houver corrupção, a estrutura do Estado brasileiro não funciona.

A questão da Marielle é cidadania, que 20% da população tem e 80%, não. É direito à alimentação, moradia, saúde, educação, lazer. Marielle estava à margem e conseguiu ser eleita, por isso, ela é símbolo.

P.- Em 2018, o sr. disse em entrevista que o problema do Rio, então sob intervenção federal, não eram os bandidos, mas os mocinhos. Segue assim?

H. T. L. – As revelações são isso. São todos mocinhos, como não? Mocinhos são os poderes constituídos —Executivo, Legislativo e Judiciário. Pode colocar Ministério Público e Tribunal de Contas. Está aí a estrutura do Estado brasileiro.

P.- Desde que o sr. deixou a polícia, tivemos UPPs, intervenção federal, o que falhou?

H. T. L. – Não é que falhou, é porque vem para fazer o remendo. O sistema de segurança do Brasil foi feito para fazer a manutenção da ordem injusta. A milícia é um dos mecanismos, ela surge dentro da estrutura do Estado. Não existe crime no Rio de Janeiro sem um agente público junto. Agora temos milícia, antes era grupo de extermínio. E a gente vai sobrevivendo com essa estrutura montada para ser desigual. A causa da morte de Marielle é a desigualdade, é a estrutura do Estado que é perversa.

P.- O sr. se desfiliou do PT antes do primeiro mandato do presidente Lula. Como avalia o governo agora?

H. T. L. – Eu ajudei a montar o PT. Sou petista até hoje, eles é que deixaram de ser.

P.- O sr. vota no PT?

H. T. L. – Às vezes nem tomando Engov (risos). A esquerda não ganhou. Não conseguimos o Legislativo, e não consigo imaginar um governo de esquerda que entrega cinco ou seis ministérios para a direita para sobreviver.

RAIO-X

HÉLIO TAVARES LUZ, 78

Foi bancário do Banco do Brasil, delegado e chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, e deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio (1999-2002) pelo PT. Deixou a política em 2002. Vive na capital gaúcha.

FERNANDA CANOFRE / Folhapress

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