RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Dori Caymmi lembra sempre do jeito como seu pai Dorival, nas conversas cotidianas, brincava com as palavras -misto de humor e poesia, muitas vezes captado da sabedoria popular. “Ele usava termos como ‘boca de afofô’, que nunca soubemos ao certo o que era”, conta o compositor. “Papai era muito criativo, inventava personagens. Falava com as crianças de um dragão muito bravo, furioso, que era o Dragu, o dragão que não cagava, essas coisas”.
Conversando sobre isso com seu parceiro Paulo César Pinheiro, Dori chamou a atenção especialmente para duas expressões que Dorival sempre repetia: “carrapicho é mato, carrapato é bicho” e “entre por onde saiu e faça de conta que nunca me viu”.
Cada uma delas gerou uma letra de Pinheiro, musicadas depois por Dori. A primeira virou “Prosa e Papo”, na qual o letrista embarca na brincadeira de Dorival e segue em versos como “Bananeira é fêmea, mamoeiro é macho/ Farolete é foco, flashlight é facho”.
A outra deu origem a “Chato” (“Vá ver se estou na esquina/ Se eu tiver, não me chame/ Não toque alto a buzina/ Que é para não dar vexame”).
Ambas foram o ponto de partida de “Prosa e Papo”, disco que Dori lança nesta sexta-feira pela Biscoito Fino. O álbum traz oito inéditas em meio às 11 faixas -duas têm letras de Roberto Didio, o restante foi feito com Pinheiro, seu parceiro mais fiel.
Em muitas delas, o artista tem a participação de convidados, entre colegas de geração e nomes mais jovens: MPB4, Joyce Moreno, Zé Renato, Mônica Salmaso, Renato Braz e João Cavalcanti.
Talvez inspirado pela memória das brincadeiras verbais de seu pai, Dori fez um disco que ele define como “otimista”. Uma perspectiva especialmente marcada em duas canções: “Um carioca vive morrendo de amor”, ode ao Rio de Janeiro; e “Evoé Nação”, celebração do Brasil de “Verger, Carybé”, “Garrincha e Pelé”, “Vitalino e Quelé”, “Buarque e Vandré”.
“Aos 20 anos, eu disse pela primeira vez numa entrevista uma frase que repeti ao longo da vida inteira: ‘esse não foi o país que me prometeram'”, lembra Dori. “Cresci com Dorival Caymmi, observando gente como Jorge Amado, Moacir Santos, Ary Barroso. Aí quando me vi adulto olhei em volta e me veio essa frase”.
Dori diz, porém, que não quer seguir no lamento. “Tem uma hora que você tem que parar de entregar os pontos e ser mais otimista, dar uma chance”. Mesmo assim, ainda guarda resistência, caracterizada por sua bem-humorada ranzinzice, contra aspectos da sociedade contemporânea -a qual se mantém afastado morando no serra de Petrópolis, numa casa cercada de verde.
O compositor não tem telefone celular, por exemplo. “Não me dou com eles. Quando encosto num celular, ele desliga”. E se irrita vendo a maneira como os telejornais incorporaram o vício de acentuar sílabas tônicas de forma equivocada: “Estão fazendo pré-proparoxítonas, tudo errado: ‘os sêrvidores’, ‘os bênefícios’. É um português ordinário”.
Dori também não tem paciência contra o que chama de “patrulhas” que apontam posturas machistas em canções antigas. “Não pode mais cantar ‘Marina’, ‘Amélia’… Então a gente faz o seguinte: joga fora Dorival e Mário Lago, destrói os castelos feudais da Europa, aquelas igrejas todas, e fica com esse presente de merda”.
Em “Prosa e Papo”, Dori deplora, com tristeza, o progresso que destrói a natureza em “A Água do Rio Doce” (“A água que segue correndo em desvio/ Riscando seu leito de um jeito arredio/ Tem medo de gente no seu rodopio/ E o medo que sente não é desvario Que é gente que mata a água do rio”). Mas, em sua música e nas letras de seus parceiros, o tom geral é solar, de afirmação do Brasil e do mundo no qual acredita.
Esse tom de afirmação não aparece apenas no disco, aliás. “Tenho feito uma série de vídeos (postados em sua conta no Instagram) chamada ‘Saudade e memória’, lembrando figuras que têm que ser lembradas, como Billie Holiday, Luizinho Eça, Maria Clara Machado, Braguinha…”, conta Dori.
Em “Prosa e Papo”, essa postura aparece também em “Canto para Mercedes Sosa”, dedicado à cantora argentina, um símbolo da esquerda latinoamericana. “Sou de esquerda, da esquerda que conheci jovem, no teatro, com gente como Vianinha”, afirma Dori.
“Mas acredito que um ditador de esquerda segue sendo um ditador. Não se pode apoiar um sujeito como Maduro, alguém que na verdade nem é de esquerda, é um louco desvairado”, diz o compositor, que não comenta como suas diferenças políticas afetam a relação com a irmã Nana, que já manifestou apoio a Bolsonaro e admiração por Olavo de Carvalho.
No novo álbum, Dori, que sempre pilotou sozinho seus discos, está trabalhando ao lado de um produtor, no caso o músico, arranjador e compositor Jorge Helder. Não foi fácil, lembra o herdeiro de Caymmi. “Como sei muito o que quero, resisto aos palpites e às vezes até saio do sério. Jorge Helder foi um herói por me aguentar, com uma gentileza e um respeito que em certos momentos não mereci”, brinca.
Aos 80 anos, Dori faz questão de seguir produzindo de forma incessante. Além das composições, ele atualmente trabalha num livro de partituras das canções praieiras de Dorival: “Foi minha formação, minha primeira percepção musical”.
“O corpo tá meio baleado, mas a cabeça está muito criativa”, define Dori, que exercita a mente com palavras-cruzadas, hábito que cultiva há décadas, e escrevendo novas músicas.
“Não gosto de me repetir, gravar o que já gravei. Quero seguir aprendendo, apesar de ser um péssimo aluno, ter dificuldade de me concentrar no estudo. Tive aulas com Moacir Santos e a única coisa que aprendi foi como a música dele é bonita”.
PROSA E PAPO
Quando Lançamento nesta sexta-feira (12)
Onde Nas plataformas digitais
Autoria Dori Caymmi
Gravadora Biscoito Fino
LEONARDO LICHOTE / Folhapress