SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Calçadas, viadutos, escadarias, paradas de ônibus e praças. Sobre colchões finos, papelões, em barracas ou ao relento. Na paisagem de São Paulo, esses costumam ser os lugares nos quais pessoas em situação de rua podem ser vistas -ou ignoradas- por pedestres ou quem passa de carro, quase sempre apressados e indiferentes.
Representantes dessa população estiveram, na segunda-feira (8), em um cenário incomum, o prédio da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), na avenida Paulista, para o seminário Repense e Reconstrua, promovido pela entidade em parceria com a Comissão Arns, a FGV Direito SP e com apoio da Folha de S.Paulo.
O evento atende à urgência que a questão assume no momento. “Acompanho esse tema há quase 50 anos na cidade e nunca vi uma situação como essa que nós estamos vivendo agora. Uma verdadeira emergência habitacional”, afirmou a urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Para Rolnik, o problema está ligado ao planejamento urbano e reflete um modelo de cidade que está em curso. “A nossa política urbana, incluindo o Plano Diretor, os projetos urbanísticos e o conjunto da regulação urbanística em vigor na cidade de São Paulo, hoje é uma verdadeira máquina de produção de população de rua”, afirmou.
Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal para a pastoral do povo da rua da Arquidiocese de São Paulo, concorda com Rolnik. “Nós não podemos pensar essa população fora da questão do mercado imobiliário, fora da especulação que hoje esmaga essa cidade e que governa São Paulo”, disse.
O crescimento rápido de construções por toda a capital não deixa de ser um paradoxo que, segundo a professora, impacta a dinâmica habitacional do município. “Em vez de ser um planejamento urbano voltado para o cuidado, o acolhimento e as necessidades da população, é um projeto para promover as oportunidades de investimento do capital financeiro que hoje está envolvido na produção de unidades, inclusive residenciais, como forma de valorização futura desse capital e não como produção que, de fato, tem a ver com necessidades e demandas”, afirmou.
Não há soluções únicas e isoladas, dizem os especialistas. A política de moradia não se resumiria apenas a assegurar um teto para as pessoas, por mais que isso seja essencial.
Laura Dias, representante do Movimento Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas em Situação de Rua, defendeu a necessidade do acompanhamento integral, com assistência social, saúde e alimentação. “Não é só pegar a pessoa e colocar dentro da casa, tem que ter todo um conjunto em volta.”
Lancellotti reforçou essa perspectiva. “Não podemos ter soluções massivas”, disse. “As pessoas necessitam ser tratadas como seres humanos na complexidade que é um ser humano. E não como um número a ser apresentado.”
A abordagem humanizada passa pelo atendimento médico integral, como expôs Fernanda Balera, coordenadora do núcleo especializado em direitos humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Quando se pensa na população de rua, o estereótipo é reduzi-la a dependentes químicos ou pessoas com transtornos mentais. Porém, argumentou Balera, como ocorre na população em geral, há casos de doenças como diabetes, tuberculose, hanseníase, entre outras, que precisam de atenção especial e, por vezes, não são consideradas como prioritárias e sequer aparecem nas fichas médicas.
“O conceito de saúde integral”, sustentou a coordenadora, “tem que considerar o sujeito na sua integralidade, como o próprio nome diz, contemplando as suas diferentes dimensões, considerando que cada pessoa é um universo”.
“Temos que entender a escuta como um instrumento para o atendimento, não podemos pressupor o sofrimento. A gente precisa escutá-lo, entrar em contato com o relato daquela pessoa”, afirmou. Segundo Balera, o gesto não passa apenas por um exercício de empatia, mas pelo reconhecimento da alteridade e autonomia do sujeito.
A escritora Juliana Borges, que atua na área de advocacy da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, por sua vez, ressaltou a importância de se discutir raça e racismo ao pensar o problema da dependência química e o acesso à saúde dessa população.
“O estigma social que é construído em relação a pessoas em situação de rua é baseado na hierarquização racial”, disse. Para Borges, há uma fragilização intencional de políticas que poderiam garantir direitos fundamentais e, por outro lado, a ampliação da criminalização.
Na visão da presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, que foi secretária de assistência social da prefeitura, na gestão de Fernando Haddad (PT), tudo parte de uma mudança de concepção da sociedade sobre as pessoas nessas condições de vulnerabilidade.
“Enquanto a gente não transformar o imaginário da sociedade brasileira sobre o que é a população em situação de rua, a gente não vai conseguir investimento nem cabeças e reflexão suficientes para transformar essa realidade”, afirmou.
Para Josué Gomes, presidente da Fiesp, o seminário foi o começo dessa conversa. “Uma oportunidade ímpar para a indústria brasileira mostrar o quanto ela pode estar engajada em soluções concretas para problemas que existem e que, sem conseguirmos resolver, nunca teremos um país desenvolvido, próspero e com a justiça social que queremos.”
JOÃO RABELO / Folhapress