SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cynthia Luiza Ribeiro do Amaral, 41, se formou no curso de serviço social pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) no último dia 4. Mas um detalhe a destacou entre os outros formandos: a cor de sua beca. Enquanto todos usavam preto, ela trajava branco.
A explicação para a roupa de cor diferente foi o período religioso pelo qual a estudante passava no momento da cerimônia de colação de grau. Cynthia foi iniciada no candomblé ketu em novembro do ano passado, logo após apresentar o seu TCC (trabalho de conclusão de curso) sobre enfrentamento à violência contra mulher e a formação no serviço social.
Por causa da iniciação na religião, ela terá que cumprir um preceito que, entre outras questões, prevê o uso diário de roupa branca, inclusive manter a cabeça coberta com tecido da mesma cor durante um ano.
Cynthia diz que é filha do Orixá Osumaré. “É um orixá que tem como característica a questão dos ciclos, das transformações. Ele é representado pelo arco-íris e pela cobra, inclusive foi homenageado pela escola de samba Viradouro”, afirma.
Diante da possibilidade de não participar da formatura com os colegas, uma vez que ela não poderia abrir mão do preceito, a aluna procurou a reitoria da universidade para saber o que poderia ser feito. “O preceito é algo sério, algo com que me comprometi. Não poderia ser flexível com isso.”
A vice-reitora da UFSC, Joana Célia dos Passos, diz que a aluna explicou que a formatura ocorreria exatamente no período do preceito. “Ela foi a primeira pessoa que fez esse pedido, mas ainda chegou muito modesta, perguntando se ela poderia usar um vestido branco na formatura.”
Em vez de apenas autorizar o uso, a universidade decidiu confeccionar a beca branca e cedê-la para o uso de Cynthia. “A vestimenta não é responsabilidade do formando ou da formanda, mas da instituição. Essa beca ficará para o próximo aluno que estiver na mesma situação”, explica a vice-reitora.
A estudante lembra que é obrigação da universidade respeitar todas as religiões. “E ela faz isso. Há processos que já estão em andamento, como cristãos que não podem fazer vestibular aos sábados e eu sou super a favor.”
Cynthia diz que ela poderia usar um vestido branco, mas a universidade definiu a beca pelo princípio de igualdade. “Não foi uma questão de representação do povo de axé, até porque tinha outros colegas que se formaram no mesmo dia e que também são de religiões de matriz africana. O pressuposto foi o respeito ao momento do rito que eu estava vivendo, inclusive apresentei declaração da minha mãe de santo dizendo que eu estava de preceito.”
A universidade se pautou na resolução interna número 175, que dispõe sobre a política de enfrentamento ao racismo institucional em suas diferentes formas de manifestação no âmbito da UFSC. “O preceito da Cynthia precisava ser respeitado. Então, a partir dessa resolução, também agimos sobre o racismo religioso”, diz Joana Célia.
RACISMO RELIGIOSO
Com a repercussão da sua história nos últimos dias, Cynthia diz que começou a receber ofensas pela internet. “Algumas pessoas têm sido extremamente agressivas, inclusive recebi mensagem privada e bloqueei, já recebi ameaça no WhatsApp e bloqueei. As pessoas não sabem que racismo é religioso é crime, mas precisam ter consciência de que essa discriminação, essa demonização da religião pode gerar mortes.”
A assistente social relata que, desde o dia da formatura, evita sair de casa sozinha. “Saí apenas para fazer uma prova de concurso, com o meu pai e o meu filho, e voltei para casa.”
Cynthia diz que já havia enfrentado preconceito por causa da sua religião antes da formação na UFSC.
“Os povos de axé têm a tendência meio de se esconderem, pois nós temos uma religião historicamente perseguida desde o período colonial e que realmente ocasiona crimes contras as pessoas de axé. Então somos muito discretos na nossa manifestação, embora isso venha mudando aos poucos.”
Para ela, as pessoas precisam saber como denunciar. “O Ministério Público, quando aceita a denúncia, toma a frente da ação e protege a vítima. O povo de axé está se munindo dessas informações para que não haja guerras religiosas. São necessárias campanhas educativas.”
HAVOLENE VALINHOS / Folhapress