SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Aqui é o fim de mundo. Nada funciona direito e ninguém liga pra gente”, gritou Mariângela Souza, 44, sentada no único ponto da única linha de ônibus no Marsilac, distrito mais distante em relação ao centro de São Paulo, no extremo sul. Partindo da praça da Sé, são 52 km de estrada. Duas horas de carro.
Era uma quinta-feira e a funcionária pública temia se atrasar para o trabalho pela terceira vez na semana por culpa do transporte público. Segundo cronograma, um coletivo do itinerário 6L01/10 -até o terminal Varginha, na mesma região- deveria partir a cada hora, mas o agendado para o meio-dia nem havia sido ligado.
O tempo passava, a fila de usuários crescia, e Mariângela ficava mais irritada. Então, tentou arrancar do fiscal o motivo do problema e uma solução imediata. Ignorada, tentou chamar a polícia. O batalhão da área, porém, estava vazio.
Voltando de lá, ela passou por uma venda e flagrou dois motoristas de ônibus tomando cerveja. “Bêbados. Eles são bêbados e acham que o povo é palhaço. Se eu for demitida por causa deles, a casa vai cair”, exclamou.
O proprietário do estabelecimento é Mitsuhoshi Tanaka, 70, conhecido como Japonês, apesar de nascido ali mesmo, filho de pais orientais. Seu endereço, logo na entrada do Marsilac, funciona como mercado, padaria, restaurante, pet shop e bar. Este último faz mais sucesso.
Sobre os clientes motoristas, o comerciante disse evitar julgamentos. Pagando, ele vende, não importa a quem.
Entranhado em densa mata atlântica, o Marsilac é o mais bucólico dos distritos paulistanos. Repleto de fazendas, trilhas e cachoeiras, e fazendo divisa com o litoral sul paulista, ele teve seus primeiros sítios capinados e barracos erguidos em meados de 1934. Sua fundação acompanhou a construção do ramal Mairinque-Santos da Estrada de Ferro Sorocabana.
Havia três estações no percurso: a Rio de Campos, a Evangelista de Souza e a Engenheiro Marsilac -homenagem a um dos engenheiros projetistas, José Alfredo de Marsillac. Posteriormente, o nome da parada foi emprestado àquela área.
Até 1935, a região pertenceu ao então município de Santo Amaro, hoje anexado a São Paulo. Já parte mais ao sudeste do distrito, o bairro de Evangelista de Souza, abraçado pelo rio Capivari e com seu horizonte marcado pela Serra do Mar, fez parte da cidade de São Vicente até 1944, quando foi anexado à capital.
Hoje, o local de 200 km² possui 11.443 moradores, a menor população de um distrito paulistano. Apesar disso, teve crescimento populacional de 38% no período 2020 a 2022, o segundo maior da cidade, atrás apenas da Barra Funda, na zona oeste.
Mesmo com mais gente, há casas de sobra. Dos domicílios particulares, 34% estão desocupados. É a maior proporção em São Paulo.
A renda média ali é de R$ 2.359,84, sendo a do município de 3.488,96. Os dados são de IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e prefeitura.
Sinal de celular é quase inexistente no distrito. Um pontinho surge na parte superior da tela dos aparelhos que são levados ao ponto mais alto da região, onde há uma casa, um campo de futebol e uma antena telefônica, instalada em 2022 pela Tim. O lustroso objeto metálico é motivo de controvérsia.
Moradores afirmam nunca ter sido ligado. A empresa diz funcionar normalmente.
A Folha conferiu. Três celulares foram levados ao Marsilac. Dois com chips da operadora italiana e outro com da Vivo. Todos ficaram fora do ar até chegarem ao topo da colina, chamado de “clube” pelos frequentadores. Eles levam até cadeiras para fazer suas ligações com mais conforto.
Outra tarefa árdua no distrito é assistir à televisão. Girar a antena para lá, empurrar ela para cá, mudar de lugar. Nada resolve. Às vezes, por interferência da sorte, um canal funciona. “Costuma ser o que a gente não quer, né?”, brinca o feirante Guilherme Gomes, 23.
Apenas uma UBS (Unidade Básica de Saúde) atende o distrito. Ela está instalada numa antiga casa, repleta de pequenos cômodos e desprovida de janelas. O endereço fica ao lado de uma farmácia e em frente a um bordel.
Quando a solitária médica falta, algo recorrente segundo relatos, são os enfermeiros os responsáveis pelo atendimento a doentes, vários acometidos por dengue. Como a Folha mostrou, o distrito vive pela primeira vez desde 2015 uma epidemia da doença, com mais de 300 casos por 100 mil habitantes.
Em meio a tantas adversidades, dois serviços são elogiados pelos habitantes. O primeiro é a internet por fibra ótica. Uma distribuidora paralela oferece o serviço por valores acessíveis. Há planos de R$ 75 a 200, e vizinhos costumam compartilhá-los para aliviar as finanças.
A educação também agrada. A escola estadual da jurisdição, Prof.? Regina Miranda Brant de Carvalho, tem estrutura reformada, quadra esportiva, laboratório de informática e transporte gratuito para os estudantes vindos de áreas rurais. Em indicadores de ensino, contudo, há problemas.
“Quem quer um futuro melhor tem que sair daqui”, desabafa Sebastião Silva, 78. O aposentado vive no Marsilac desde o início dos anos 2000, após sair do Jaraguá (zona norte) e afirma odiar, mas se mantém no local por ser barato.
Ele vive com um salário mínimo, sozinho, pagando R$ 350 de aluguel e uma dívida de R$ 400 oriunda de um empréstimo. O pouco que sobra vai para a alimentação.
“Não tenho nada para fazer. Não tenho muitos amigos, não tenho expectativa de coisas melhores”, diz sentado num banco de praça, onde passa seus dias observando a vida alheia e torcendo para alguém puxar conversa.
O QUE A PREFEITURA DIZ SOBRE OS PROBLEMAS APRESENTADOS
Procurada, a SPTrans, gestora do transporte público municipal, disse repudiar veementemente atos e comportamentos de motoristas das empresas concessionárias a colocar em risco a vida ou desrespeitem o passageiro.
“Acionamos a fiscalização para intensificar imediatamente o acompanhamento do serviço prestado e apurar a denúncia de má conduta dos motoristas e do fiscal da linha 6L01/10 Marsilac – Term. Varginha e, caso seja constatada irregularidade, a concessionária Transwolff será autuada e acionada para tomar as medidas cabíveis”, escreveu em nota.
Já a Secretaria Municipal da Saúde informa que a UBS Marsilac atende no modelo estratégia saúde da família, priorizando o acompanhamento dos moradores a longo prazo. A equipe é composta por médica generalista, dois enfermeiros, três auxiliares de enfermagem e cinco agentes comunitários de saúde, afirma a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Também há cirurgião dentista, auxiliar de saúde bucal, farmacêutico, psicólogo, nutricionista, agente de promoção ambiental, auxiliares técnicos administrativos, técnico de farmácia e um gerente, afirma a prefeitura.
“A médica citada na reportagem atua na unidade há nove meses e, quando necessário, a gestão providencia a cobertura imediata de profissional plantonista”, diz a pasta.
BRUNO LUCCA E KARIME XAVIER / Folhapress