VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Na entrada do pavilhão central da Bienal de Veneza, Adriano Pedrosa conta que já tinha na cabeça há mais de uma década a ideia que levaria à maior mostra de arte do mundo caso um dia fosse chamado a assumir o seu comando.
O chamado veio, e aquele passado se choca com o presente. Se no átrio da primeira galeria brilha um neon que dá nome à exposição, dizendo “Stranieri Ovunque”, ou estrangeiros por toda parte, obra de Claire Fontaine, dupla de artistas europeus radicada na Itália, a fachada do prédio neoclássico está toda estampada com um mural do Movimento dos Artistas Huni Kuin, um coletivo de indígenas brasileiros.
Ele lembra que se “os povos originários são muitas vezes tratados como estrangeiros em sua própria terra”, somos todos estrangeiros em algum grau, rodeados de outros estrangeiros, não importa onde estivermos no mundo.
O estrangeiro, no caso, roça o estranho, uma aproximação linguística que Pedrosa gosta de frisar. Nesse ponto, o elenco superlativo desta 60ª Bienal de Veneza, com 331 nomes, o dobro do habitual, está formado por aqueles que de fato deixaram sua terra natal para rodar o mundo, em migrações forçadas ou não, aqueles que se identificam como queer, de corpos ou sexualidades ditos desviantes, os chamados outsiders, artistas autodidatas distantes dos cânones de sua época, e indígenas de todo o planeta.
Desde que Pedrosa, também diretor artístico do Masp, em São Paulo, foi escalado para comandar a mostra italiana, um certo frisson atravessa o chamado sul global, na expectativa de que o primeiro latino-americano no cargo em mais de um século de história do evento levaria ao centro do mundo da arte figuras nunca vistas da periferia do planeta.
O mercado também ficou eriçado com a chance de estampar o cobiçado carimbo de Veneza no passaporte de artistas que antes circulariam com muita dificuldade pelos centros do alto escalão da economia de galerias e leilões. “Muitos são figuras conhecidas, canônicas em seus países, mas desconhecidas em outros lugares”, diz Pedrosa. “Pensei no que era importante mostrar aqui, porque sei que isso é um ponto de inflexão na vida de um artista e muda a vida deles.”
Ou a morte, no caso. A maioria dos nomes escalados para a mostra já morreu. Em grande parte, são figuras que marcaram as correntes modernistas do início do século passado, entre eles o cubano Wilfredo Lam, os mexicanos Diego Rivera e Frida Kahlo, os brasileiros Candido Portinari, Cícero Dias, Emiliano Di Cavalcanti, Ismael Nery, Maria Martins e Tarsila do Amaral, o venezuelano Armando Reverón, o uruguaio Joaquín Torres-García e o indiano Francis Newton Souza, para pinçar nomes famosos.
Mesmo antes da abertura da mostra nesta semana, para os jornalistas e os VIPs, Pedrosa já vinha rebatendo críticas de que sua exposição de arte contemporânea olhava mais para o passado do que para o presente, uma seleção mais com cara de museu empoeirado do que uma constelação de “new faces”, digamos, pronta para entrar no radar da crítica e do público.
Não há problema nisso, mas há maneiras e maneiras de construir diálogos poderosos com o passado, longínquo ou próximo. Pedrosa, em desvantagem na comparação, assume a exposição na sequência da italiana Cecilia Alemani, que há dois anos orquestrou uma das mais belas edições da Bienal de Veneza dos últimos tempos. O coração de sua mostra também era a história, em especial o surrealismo levado a cabo por mulheres e ativistas feministas do mundo todo.
Se a leitura histórica de Alemani foi capaz de arquitetar um núcleo histórico elétrico, que irradiava ideias até as bordas da exposição, como um coração estético pulsante, as decisões de Pedrosa se traduzem com certa rigidez nas galerias, alas estanques que se separam como a água do óleo, o velho alérgico ao novo. Mesmo que existam pontos de tensão em comum, essas divisões se deixam ler como um freio de mão puxado no caminhar pela mostra.
No pavilhão principal dos Giardini, que tem galerias menores, isso fica mais evidente. Duas salas principais destinadas a artistas históricos concentram uma overdose de arte, primeiro a sala das abstrações, em que vemos exercícios primordiais de um geometrismo periférico que ecoa o rigor da Bauhaus nos trópicos e no Oriente Médio, e depois a ala dos retratos, uma pinacoteca vertiginosa em que rostos sorriem ou se contorcem de escárnio por nós.
Essas alas sobrecarregadas têm impacto incontornável. Parecem ser os momentos em que a mostra, na sofreguidão de provar o seu ponto, sufoca o espectador com mais do mais, todos os modernismos possíveis em diálogo antes impossível, todos os gestos antes separados por décadas e oceanos empilhados na mesma onda dolorosa de passos colonialistas para trás e passos vanguardistas adiante, que proliferaram a despeito da violência.
“O modernismo viajou muito pelo mundo. Foi devorado, canibalizado”, diz Pedrosa. “E muitos artistas viajaram por muitos modernismos.” Os momentos históricos da mostra, destacados dessa forma e encerrados em espaços à parte, de fato deixam isso nítido e não deixam de impressionar, apesar do excesso, pelo efeito de comparação sublime entre exercícios estéticos tão próximos apesar de construídos a distâncias tão grandes.
É uma beleza ver lado a lado as abstrações geométricas das libanesas Etel Adnan e Saloua Raouda Choucair, da brasileira Judith Lauand e da cubana Carmen Herrera. São propostas formais irmanadas que driblam barreiras geográficas. Tomie Ohtake, ao lado do colombiano Marco Ospina, da filipina Nena Saguil e da cubana Zilia Sánchez, também mostra como nem suas raízes japonesas e depois a vida toda radicada em São Paulo a apartaram de um pensamento abstrato de formas fluidas e leves.
Na ala dos retratos, a forma humana grita em busca de uma identidade. Há desde o realismo clássico de corpos que posam plácidos a estilizações exóticas, de figuras com seus traços exacerbados quase até atingir o grau da caricatura, caso de “Cabeça de Mulato”, de Portinari, um homem negro de lábios grossíssimos e olhar pétreo. Juntas, essas figuras de todas as cores parecem formar ali um grande salão dos excluídos, gente retratada por artistas que talvez nunca estariam juntos na mesma galeria.
Essa estratégia de aproximar o inaproximável marca a trajetória de Pedrosa. Se sua série de mostras no Masp iniciada com “Histórias Afro-Atlânticas”, um dos grandes marcos da história das exposições nas últimas décadas, vem abarrotando as paredes do museu com pares e mais pares de obras gêmeas separadas no nascimento a cada temporada, ele mesmo traça a raiz de sua Bienal de Veneza ao polêmico Panorama da Arte Brasileira montado há 15 anos no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Lá estavam só artistas estrangeiros que, de alguma forma, se encontravam com o Brasil ou a ideia de brasilidade. Em Veneza, Pedrosa inverte a aposta e enche uma galeria do Arsenale de artistas italianos ou de raízes italianas que fizeram a vida fora da Itália. Ele usa os famosos cavaletes de vidro de Lina Bo Bardi, quase um “pocket show” do Masp além-mar, para mostrar trabalhos de Alfredo Volpi, Anita Malfatti, Anna Maria Maiolino, Eliseu Visconti, entre outros.
Uma vez digeridas as densas alas históricas, há espaços de respiro, e aí a mostra decola em alguns momentos. A galeria que põe face a face as pinturas da chamada fase romana de Rubem Valentim com a as abstrações da moçambicana Bertina Lopes, que se radicou em Roma, entremeadas pelas esculturas de cerâmica do camaronês Victor Fotso Nyie, demonstra com mais força essa ideia de encontro de estrangeiros por toda parte, cada um com os ecos de suas raízes e faíscas europeias.
Outra sala opõe os desertos e paisagens pintados por Kay WalkingStick, artista americana de origem indígena, aos desertos do libanês Aref el Rayess. De um lado, uma imensidão faroeste, e do outro, cidades brancas que brotam da areia sob o sol escaldante. Nos dois artistas, o retrato de uma estranha solidão, do nativo apartado de sua terra por motivos de toda sorte.
Pedrosa, que também ressalta ser um dos primeiros homens gays no comando da mostra italiana, ainda orquestrou uma série de alas queer ao longo da exposição. Há grandes instalações um tanto panfletárias, como a obra da mexicana Bárbara Sánchez-Kane, com um trio de manequins de soldados empalados. De frente, são militares violentados, e de costas vemos que eles vestem lingerie vermelha. Ou a obra da americana Puppies Puppies, outro manequim, vestido com um look todo de LED que pisca, soletrando a palavra “pulse” na cintura, referência ao ataque terrorista à boate gay de mesmo nome nos Estados Unidos que matou 49 pessoas há oito anos.
Mas há momentos mais sutis e intimistas, como o encontro das pinturas do jovem artista americano Louis Fratino com o metafísico italiano Filippo de Pisis, um nome menos conhecido da turma de De Chirico. Fratino revisita Picasso e outros mestres modernos para construir cenas eróticas ou interiores domésticos atravessados por certa lascívia, enquanto De Pisis pinta naturezas-mortas e nus masculinos marcados pela delicadeza. Uma bela surpresa também são as telas da artista trans britânica Erica Rutherford, num registro pop e colorido.
Nesse ponto, os grandes gestos desta Bienal de Veneza, como as enormes instalações do Arsenale, parecem ofuscados por esses momentos de calma em especial pelas pinturas, que dominam quase toda a extensão da mostra. Se a grande instalação do Mataaho Collective, grupo de artistas indígenas da Nova Zelândia, que abre as galerias do espaço, impressiona com uma imensa trama de tecido que abraça os pilares da construção, as demais megaobras são mais obstáculos do que pontos de inflexão no percurso, caso dos murais gigantescos da mexicana Frieda Toranzo Jaeger e do coletivo indiano Aravani Art Project.
O imenso colorido desses trabalhos, por outro lado, destoa de um momento político sombrio no mundo, em especial na Itália controlada pela ultradireita da primeira-ministra Giorgia Meloni e uma Bienal de Veneza que tem na presidência um aliado ideológico da mandatária, o polêmico Pietrangelo Buttafuoco, que intriga o establishment artístico do país. Enquanto isso, Roma aperta o cerco contra imigrantes, tendo fechado um acordo com a Albânia para que todos aqueles resgatados no Mediterrâneo vindos da África sejam acolhidos no país vizinho, não na Itália algo na contramão da ideia de estrangeiros por toda parte.
Pedrosa lembra que foi apontado para o comando no mandato do presidente anterior da mostra e que o diálogo com o novo comando tem sido cordial e diplomático. Ele também diz que não sofreu nenhum tipo de censura ou cerceamento na hora de montar sua exposição, mas o endurecimento da política atual não desfaz uma nuvem escura que paira sobre o horizonte, aumentando especulações no mundo da arte de que a Itália siga na direção ultraconservadora de outros pontos da Europa, como a Hungria e a Polônia.
Italianos escalados para a mostra, aliás, não deixam de dar seus recados, em raros momentos mais políticos da exposição. Alessandra Ferrini, por exemplo, investiga as relações controversas entre Itália e Líbia a partir do encontro do então primeiro-ministro Silvio Berlusconi com o ditador Muammar Gaddafi, que selou, há uma década e meia, um tratado de amizade entre os países e detonou o redesenho de políticas migratórias no Mediterrâneo.
Já Marco Scotini exibe, em telas montadas num grande suporte espiralado, exemplos de seu “Disobedience Archive”, ou arquivo da desobediência, que mistura desde registros de performances e obras de arte que expõem e combatem políticas linha-dura a imagens documentais de protestos, algo que, na visão do artista, seria um manual de instruções para o ativismo.
Pedrosa, que costuma dizer que não há regras para a construção de uma exposição, seguiu obediente o seu próprio manual em Veneza. A fórmula de sucesso, aclamada mundo afora por corroer a rigidez dos museus a partir de dentro, transformando acervos e reinventando montagens, agora é posta à prova fora do museu, e no maior palco do planeta.
O jornalista viajou a convite da galeria Almeida & Dale
SILAS MARTÍ / Folhapress