Maior comício das Diretas uniu lideranças no Anhangabaú e impulsionou pressão contra ditadura

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sócrates, meia do Corinthians, não era conhecido pelo talento musical quando subiu ao palanque das Diretas Já no início da noite de 16 de abril de 1984, uma segunda-feira. No entanto, ao lado de amigos do time, como Casagrande, Wladimir e Juninho, o jogador pegou o microfone com convicção diante da multidão que tomava o Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

Era o último grande comício antes da votação da emenda Dante de Oliveira, marcada para o dia 25. A proposta previa eleições diretas para presidente da República ainda em 1984, dando fim definitivamente às mais de duas décadas de ditadura militar.

A presença de cantores, como Fafá de Belém, Beth Carvalho e Walter Franco, não intimidou o líder da Democracia Corintiana, que, um pouco desafinado, soltou a voz com “Para Não Dizer que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, uma espécie de hino informal das Diretas: “Vem, vamos embora / Que esperar não é saber”.

Foi um dos momentos mais comoventes do comício, relatou Clóvis Rossi, repórter da Folha de S.Paulo.

De origem tupi, a palavra Anhangabaú está associada à ação do diabo. Naquele dia, porém, Satanás parecia estar de folga. Partidos de centro e de esquerda, que trocavam críticas com frequência, deixaram suas rivalidades de lado, unificaram o apelo contra a ditadura e promoveram o maior ato popular da história do país até então.

Entre os expoentes do PMDB, estavam o presidente do partido, Ulysses Guimarães; os governadores Franco Montoro (SP) e Tancredo Neves (MG); o deputado federal Miguel Arraes (PE); e o senador Fernando Henrique Cardoso (SP) -o PSDB só seria fundado quatro anos depois.

As siglas mais à esquerda também estavam presentes. O principal representante do PDT era Leonel Brizola, governador do Rio de Janeiro. Pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do partido.

Osmar Santos, que conduzia um evento das Diretas pela décima vez, anunciou 1,7 milhão de pessoas no ato, e a Polícia Militar falou em 1,5 milhão. Eram números exagerados, como constatou o Datafolha anos depois. Segundo cálculos feitos pelo instituto, a região comportaria no máximo 400 mil pessoas –era, de qualquer forma, uma quantidade extraordinária.

“Era uma multidão tão densa que mal conseguíamos nos movimentar”, lembra o maestro Júlio Medaglia, que completava 46 anos naquele dia.

Desde o início, às 17h30, Medaglia acompanhou o comício ao lado da Orquestra de Campinas, regida pelo seu amigo Benito Juarez. Entre as obras apresentadas pelo conjunto de músicos, havia uma inédita, “Sinfonia Eleitoral nº 1”, composta por Juarez especialmente para a ocasião.

O ato fechou a campanha das Diretas “com chave de ouro”, diz o jornalista Oscar Pilagallo, autor de “O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (ed. Fósforo). “Na essência, foi igual aos outros comícios, só que com muito mais gente -ainda que estimativas tenham sido todas inflacionadas, a multidão era impressionante”.

De acordo com ele, “o tamanho do comício deu um gás final à campanha. Na semana seguinte, ao votar a emenda, os políticos governistas tinham contra si o peso da sociedade civil, o que foi claramente sinalizado no Anhangabaú. Tanto que, ao contrário do que se previa inicialmente, o resultado foi apertado -faltaram só 22 votos para a maioria qualificada”.

Às 20h30, quando o comício estava próximo do final, o presidente João Figueiredo apareceu na TV para apresentar uma proposta de eleições diretas mais tarde, em 1988. As lideranças no palanque souberam com antecedência do anúncio e exploraram o tema em seus discursos.

“O povo brasileiro já não suportará mais quatro anos de governo biônico”, discursou Lula, o mais aplaudido, segundo Clóvis Rossi. Ulysses foi o último político a falar: “Enquanto Figueiredo dirá que a eleição direta será em 1988, a República verdadeira está aqui, afirmando que queremos a eleição já, a 15 de novembro, para presidente da República”.

O 16 de abril no Anhangabaú só alcançou tamanha adesão dos políticos e da população porque o ato anterior das Diretas em São Paulo, o comício da praça da Sé em 25 de janeiro, havia sido bem-sucedido, avalia Ricardo Montoro, filho do governador Franco Montoro e seu secretário particular naquela época.

“O comício da Sé foi, de certo modo, perigoso, havia um receio de que pudesse soar como provocação ao regime militar. Boa parte da equipe do Montoro se opôs à ideia de fazer [um ato de grandes dimensões], mas o governador foi firme”, afirma Ricardo.

O advogado José Carlos Dias, então secretário estadual da Justiça, lembra-se de uma das reuniões preparatórias para o ato de 25 de janeiro. “Alguém levantou a hipótese de fazer uma manifestação no Theatro Municipal. Mas Montoro queria o povo participando e resolveu que seria na praça da Sé”, recorda-se. “Eu mesmo não acreditava que encheríamos a Sé.”

O êxito do comício de janeiro deu segurança para planejarem o evento de abril. “No caso do Anhangabaú, não existia mais receio, o sentimento era de consagração”, conta Ricardo.

Ele estabelece uma ligação direta do ato de abril com o desfecho do regime. “Esse comício marcou o fim da ditadura porque logo depois o Tancredo, em comum acordo com Ulysses e Montoro, se lançou candidato e acabou se elegendo no Colégio Eleitoral”, diz Ricardo, hoje vice-presidente da Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab) de São Paulo.

“Nós perdemos as eleições diretas, mas ganhamos o fim da ditadura, esse é o significado do 16 de abril.”

De acordo com Pilagallo, não é bem assim. “Acho que o Ricardo Montoro supervaloriza um evento que teve em seu pai um dos protagonistas, o que é compreensível. Mas, em termos históricos, é difícil sustentar essa interpretação.”

Para o jornalista, “Tancredo foi, desde o início da campanha, o candidato das indiretas, apesar de ter participado de vários comícios. Ele só admitiria isso um mês após o comício do Anhangabaú, mas não em decorrência do comício. Ele apenas seguia o seu caminho natural”.

“O acordo dos caciques do PMDB em torno de Tancredo foi viabilizado porque o mineiro era o único líder de oposição que dispunha de legitimidade e, ao mesmo tempo, era considerado aceitável pelos militares. Foi isso o que o levou à vitória no Colégio Eleitoral -e não os ecos do Anhangabaú. Com essa observação, não quero reduzir a importância dos três líderes citados”, complementa Pilagallo.

Divergências à parte, não parece haver dúvida de que se trata de um capítulo inesquecível da história política brasileira.

Segundo José Carlos Dias, mais tarde ministro da Justiça do governo FHC, “assim como a ditadura foi um episódio nojento da nossa história, as Diretas foram um momento do qual nós, democratas, devemos sempre nos orgulhar”.

NAIEF HADDAD / Folhapress

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