SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Berço da independência dos Estados Unidos, a Filadélfia é um destino proibido para os protagonistas de “Guerra Civil”, ficamos sabendo logo no início do filme. Se o objetivo é chegar à capital, Washington, o melhor a fazer é se enfiar em estradas desertas e bombardeadas para contornar a cidade.
É significativo que seja a capital da Pensilvânia a escolhida para estrelar um dos diálogos inaugurais do longa de Alex Garland. Primeiro por seu simbolismo patriótico e, segundo, porque o estado é dos mais decisivos para as eleições americanas -seu volumoso colégio eleitoral escolheu Trump em 2016, mas o rejeitou no pleito seguinte.
Assim, o exercício de futurologia do cineasta deixa claro que aquela distopia não descamba para delírios fantasiosos, mas firma o pé em solo americano e no presente. As estradas destruídas de “Guerra Civil” estão assim por uma catástrofe política, depois que um conflito divide os Estados Unidos em dois.
“Este é um filme que mostra que a polarização é a maior ameaça à democracia no mundo moderno”, crava Wagner Moura, protagonista ao lado de Kirsten Dunst.
Não é com eles que a trama começa, porém. Os primeiros segundos mostram Nick Offerman nos trajes do presidente americano, ensaiando um discurso que, aos poucos, dá algum contexto como munição ao espectador.
Sabemos que a liberal Califórnia surpreendentemente formou uma aliança com o conservador Texas, lutando na costa oeste. Do outro lado, na Flórida, células dissidentes pressionam as Carolinas do Norte e do Sul a se juntarem na luta armada contra o que restou do governo federal.
Nunca estivemos tão próximos da vitória, diz o presidente, só para ter o discurso transformado em fake news no minuto seguinte, quando percebemos que as coisas não vão tão bem para o seu lado. Descobrimos quase como quem abre o jornal, pelas palavras do repórter vivido por Moura e pelas lentes da fotógrafa de Dunst.
Depois de cobrirem um tumulto, eles tornam público o objetivo que guiará a trama –entrevistar o presidente na sitiada Washington, lar de soldados truculentos e de fanáticos que odeiam a imprensa. É uma missão suicida, adverte o veterano vivido por Stephen McKinley Henderson, que colabora com “o que restou do New York Times”.
Ao trio formado pelo expansivo Joe, a calejada Lee e o sábio Sammy se junta Jessie, uma fotojornalista iniciante vivida por Cailee Spaeny, estrela de “Priscilla”, e que ainda não aprendeu a ser indiferente aos horrores da guerra, tampouco a ter a frieza necessária para desempenhar o ofício enquanto rajadas de bala voam ao redor.
Assim, “Guerra Civil” vai se transformando em diferentes longas. É um filme de guerra, de catástrofe, de estrada, de amadurecimento e, mais importante do que qualquer coisa, um filme de jornalismo -e um que apresenta a profissão como uma droga, absolutamente viciante.
Isso fica claro nos olhares vidrados de Moura, que sente verdadeiro tesão pela adrenalina do campo de batalha, e nos olhares assombrados de Dunst, que a cada clique é perseguida pelos fantasmas de soldados e civis que viu morrer pelas lentes de sua câmera.
“É maravilhoso que o filme seja contado pelo olhar do jornalista, que é um profissional que não toma lado. Ele reporta os fatos para que as pessoas façam as perguntas. E o filme assume esse lugar”, diz Moura, que é jornalista por formação e ainda se sente muito conectado ao ofício -não à toa, também interpretou um repórter na série “Iluminadas” e se prepara para viver mais outro em “Say Her Name”.
Ironicamente, “Guerra Civil” é um filme sobre jornalistas que dosa cuidadosamente as informações que vai compartilhar com o espectador. Não sabemos se o presidente no poder é democrata ou republicano, por exemplo, mas ouvimos que ele está num terceiro mandato, algo que não existe na Constituição americana.
“Recebemos pistas de que o cara é um fascista, mas eu acho, sinceramente, que ligar esse personagem a figuras reais é um desserviço ao filme. Não há na trama uma agenda ideológica. E você sabe que eu sou uma pessoa que não tem medo de falar as coisas”, diz Moura ao ser questionado sobre a proximidade do personagem com líderes que acirraram a era de polarização em que vivemos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Ele deixa claro, no entanto, que “Guerra Civil” é um retrato de uma realidade que parece “assustadoramente próxima”, lembrando a invasão do Capitólio americano e os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, por apoiadores dos dois líderes de direita.
“A gente sabe muito bem o que é a polarização. O mundo todo sabe. E para os americanos o filme gera uma dissonância cognitiva, porque eles estão acostumados a ver essas cenas em filmes sobre guerras no Oriente Médio. Agora estão vendo em Washington”, diz sobre as explosões que tomam marcos do nacionalismo americano, como Lincoln Memorial e a Casa Branca.
Por trás dos discursos, “Guerra Civil” ainda pretende ser um blockbuster. Foi lançado nos Estados Unidos quebrando o recorde de bilheteria de estreia da A24, produtora queridinha do momento, e não economizou nos efeitos especiais e sonoros –foram US$ 50 milhões de orçamento, cerca de R$ 262 milhões, dos quais a metade já foi recuperada.
A trilha sonora enérgica e repleta de amostras do cancioneiro americano -do rock ao folk ao rap- trava sua própria batalha com os sons de tiros, hélices, sirenes e gritos, ensurdecedores justamente para que o espectador tenha uma experiência imersiva. No set, também, a ideia era que os atores entrassem no conflito, e por isso os efeitos sonoros eram reproduzidos num volume próximo ao da versão final.
Tudo em “Guerra Civil” é hiperbólico, narrativa ou tecnicamente. Afeito a tramas distópicas, o diretor-roteirista Alex Garland, de “Ex Machina” e “Aniquilação”, elevou a catástrofe de seu cinema à máxima potência, combinando um filme inegavelmente político à pipoca das salas comerciais.
“Esse desejo sempre esteve no roteiro, porque o Alex é, antes de tudo, um escritor. Eu tinha dúvidas de como ele conseguiria fazer isso, lidar com temas tão delicados enquanto criava um filme tão ancorado em cenas de ação, em entretenimento. Mas está tudo lá”, diz Spaeny, empolgada com sua primeira passagem pelo Brasil.
“Guerra Civil” faz discursos reconhecíveis para qualquer americano em 2024, e também para qualquer brasileiro. Fala-se em cidadãos de bem e leais à bandeira, há um sequestro dos símbolos nacionais e do que significa ser americano, assim como houve nos últimos anos de acirramento entre direita e esquerda.
Seu terço final, narrado mais pelas fotografias feitas por Lee e Jessie do que por diálogos, evoca ainda “Apocalypse Now”, registrando o alvorecer dos helicópteros barulhentos que cruzam o céu de uma nação em ruínas. Como as fotografias delas, são imagens que enchem os olhos e perturbam na mesma medida.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress