SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No litoral alagoano da década de 1990, um grupo de adolescentes invade casas extravagantes por diversão. Bebem até dormir, nadam nas piscinas e assistem fitas pornô. Depois, vão à praia, onde abrem ouriços para comer sua carne e competem para ver quem consegue ficar mais tempo submerso. De vez em quando, trombam com Sem Coração, garota apelidada pela cicatriz que corta seu peito.
O problema é que, de ora em ora, o mundo dos adultos invade o que parece ser um eterno verão. Galego, um dos rapazes, apanha do pai e vai parar na Febem atual Fundação Casa. Vitinho é gay e sofre ameaças constantes de outros homens da vila. Sem Coração quer ser pescadora como o pai, que a desaconselha devido às dificuldades da profissão.
Quando estreou no 67º Festival de Cannes, em 2014, “Sem Coração” era um curta-metragem criado a partir das memórias de Nara Normande, que dirige a obra com Tião que cresceu em Guaxuma, praia do litoral norte de Maceió. A convivência com os locais alguns deles chegaram a atuar no curta incentivou a dupla a retornar para continuar a história.
Dez anos depois, “Sem Coração” chega aos cinemas brasileiros pela Sessão Vitrine Petrobras como longa e com o caldo mais engrossado, depois de vencer o prêmio Félix de melhor filme LGBTQIA+ do Festival do Rio e estrear no Festival de Veneza no ano passado.
O retrato social ganhou contornos trágicos de realidade. Galego, por exemplo, menino rebelde e de gingado malandro, mas protetor com os amigos, foi inspirado em um dos garotos que participou do curta assassinado pouco tempo depois.
A personagem principal também mudou, e agora é uma menina, Tamara, que está descobrindo sua sexualidade. Sua paixão por Sem Coração guia a narrativa o que faz lembrar “Capitães da Areia”, que, apesar de ainda viverem na zona cinza da moral, dão uma à outra a aceitação que o mundo exterior negou em algum momento.
“Eles se protegem, mas Alagoas é um dos estados mais homofóbicos do país. A gente sabe como é cidade pequena. É uma realidade que existe, então queríamos abordar essa violência, mas sem cair em clichês”, diz Nara Normande.
Tamara e o irmão são de classe média e ela está com a passagem comprada para Brasília, onde fará faculdade. Ela confessa seu medo de mudar à mãe, vivida por Maeve Jinkings que depois do sucesso em “Aquarius” e “O Som ao Redor”, protagonizou o celebrado “Pedágio”, no ano passado, e “DNA do Crime”, série da Netflix.
Suas reticências em abandonar a vida poética à beira-mar, preenchida por olhares e toques tímidos trocados com Sem Coração, começam a se dissipar conforme o mundo dos adultos invade seu cotidiano.
“Os amigos dela vão ficar ali, ou pode ser que saiam, mas com muito mais esforço”, diz Normande, que baseou parte do despertar sexual de Tamara em sua própria história. “Conforme ela vai entendendo sua sexualidade e as violências ao seu redor, há uma tomada de consciência.”
Os personagens não foram os únicos que mudaram quando os diretores recomeçaram as filmagens, já que o novo milênio tratou de ocupar sem trégua as praias virgens e descampadas das memórias de Normande. “De 2014 para cá também mudou muito. Tivemos que filmar em várias praias, como Guaxuma, Garça Torta e Porto de Pedras e fazer uma mistura para criar uma paisagem”, diz. “Se virássemos a câmera muito para um lado, já pegaríamos um resort em construção”, completa Tião, também diretor.
A criação de uma praia fantasiosa combina com os elementos quase fantásticos inseridos na trama para traduzir a excitação dos sentimentos joviais. Tática que Normande aprendeu com a animação, área em que também atua.
Quando Tamara percebe sua paixão por Sem Coração, por exemplo, sonha com uma enorme baleia, que dias depois aparece na praia. “A realidade às vezes é fantástica”, diz Tião. O animal remete bem a primeira paixão, sentimento avassalador e impossível de esconder, algo que deixa qualquer um desnorteado.
SEM CORAÇÃO
Onde Nos cinemas
Elenco Com Maya de Vicq, Eduarda Samara e Maeve Jinkings
Direção Nara Normande e Tião
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress