‘Sem Coração’ encanta pela poesia inesperada das cenas fraternais

FOLHAPRESS – O que “Sem Coração” traz de mais vivo é uma certa sensibilidade. Ou serão duas? As de Nara Normande e Tião, coautores do filme? Ou serão sensibilidades que se fundem para formar uma? Não importa. Esse é o tipo de pergunta que nunca se faz sobre os Taviani, ou sobre os Coen, Joel e Ethan, porque são irmãos.

No caso, no entanto, a fraternidade parece ser um tema privilegiado para ambos e para este filme de estreia no longa-metragem. Porque aqui estamos no litoral, um litoral nada urbano, onde um grupo de amigos forma uma unidade em que meninos e meninas, ricos e pobres, não se distinguem. Eles brincam na praia, passeiam, descobrem-se.

Mas grupo também significa exclusão, sobretudo na adolescência. Aqui, ele designa alguém para ficar de fora. No caso, a menina a quem chamam de Sem Coração —o que vem do mito de, ao nascer, ela ter tido o seu coração arrancado e substituído por partes mecânicas.

No filme, Tamara é o centro do grupo. Ela vem de uma família de classe média liberal, o que lhe facilita esse contato com amigos mais pobres. Crianças e adolescentes costumam passar batido por diferenças de classe social, é verdade, mas a origem numa família liberal facilita o contato.

O fato é que Tamara, prestes a deixar a praia rumo à universidade, em Brasília, sente-se atraída pela exclusão. O que está fora, ou aquela que está fora, Sem Coração, no caso, de quem se tornará amiga.

Entramos aos poucos na angústia da adolescência: descobrir quem cada um é, separar-se do grupo, afirmar sua personalidade e, claro, sua sexualidade. É quando certa dispersão do grupo se opera.

Ao longo dos contatos de grupo ou dos encontros interpessoais, o que sobressai é a sensibilidade de Normande e Tião para a paisagem, em especial a praieira, em que as imagens parecem evocar a pintura de Pancetti.

Esse forte viés contemplativo se duplica de imagens inesperadas, imagens poéticas que de repente interrompem o fluxo prosaico da narrativa.

Um exemplo entre outras interessantes: na visão de Tamara, uma baleia surge na praia. Sem Coração a apalpa e como que encontra uma porta, uma entrada no corpo do animal. Ela desaparece em seu interior. Pouco depois a mão, em chamas, apenas a mão, sai do corpo da baleia.

Já o aspecto narrativo parece interessar bem menos à dupla de autores. Em favor da opacidade, jogam logo nas sequências iniciais a invasão de uma casa que mal podemos distinguir, por exemplo, da casa dos pais de Tamara. Aonde nos leva isso? Quase ao final do filme ficamos sabendo a quem pertence à casa invadida, quem são os proprietários, decorrências etc.

Esse tipo de opção esfria a relação do filme com seus personagens, de quem não nos sentimos tão próximos, acredito, quanto os diretores gostariam. A própria narração torna-se problema, mais do que os personagens cuja história narra.

Eis um ponto que talvez se possa aperfeiçoar nos futuros filmes da dupla, mas que não tira a beleza do que vimos nem a singularidade do olhar sobre um universo juvenil que se depara com as questões de sempre, duplicadas pelas novas fronteiras da sexualidade.

Sexualidade, diga-se, que os autores trabalham quase sempre discretamente. Um ou outro beijo aqui e é tudo. Melhor assim: questões íntimas não ganham nada ao se tornarem públicas —por fictícios que sejam os personagens da trama.

SEM CORAÇÃO

Avaliação Bom

Quando Estreia nesta quinta (18) nos cinemas

Classificação 12 anos

Elenco Maya de Vicq, Eduarda Samara, Alaylson Emanuel

Produção Brasil, 2023

Direção Nara Normande, Tião

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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