Enchentes de Araçatuba: retirar última pedra

Hélio Consolaro
Hélio Consolaro
Hélio Consolaro, professor, jornalista e escritor, 75 anos. Oito livros publicados. Membro da Academia Araçatubense de Letras, foi vereador e secretário municipal de Cultura por oito anos.
Foto: Divulgação

Sou de uma época, inclusive fui vereador nela, em que a Lagoa das Flores era um trauma para a cidade de Araçatuba: inundações em todos os anos. A população do Jardim América aguardava a estação chuvosa com o coração na mão.  

Alguns prefeitos faziam ouvidos moucos, não ouviam o clamor do povo, outros tomavam parte do forféu, iam até lá ajudar a carregar os móveis das casas. Solução mesmo, nada.

Havia duas versões para as causas de tais enchentes.

VERSÃO RELIGIOSA (MÍTICA): a lagoa foi soterrada com os entulhos da demolição de dois templos da igreja católica: matriz Nossa Senhora Aparecida (centro) e capela São Benedito (bairro Santana). A enchente era interpretada como um castigo divino, enquanto houvesse na lagoa uma pedra, um tijolo dos escombros dos dois templos, haveria enchentes que começaram com o soterramento.

VERSÃO CIENTÍFICA: as lagoas são lugares da decantação das águas fluviais (das chuvas). O caboclo, homem da roça, com seus conhecimentos empíricos dizia que em lugar onde nasce taboa (uma planta do brejo), não se constrói porque é o espaço sagrado das águas. Mas o conhecimento dos engenheiros era soberbo, acreditar em caboclo! Entulho na lagoa, enchente nas casas.

Como resolver? A engenharia apresentava projetos caríssimos, que a Prefeitura não ia ter nunca. Não sei se os engenheiros queriam ganhar dinheiro ou era ignorância mesmo. E o problema era empurrado com a barriga, e o povo sofrendo com as enchentes. 

Até que de 2009-2016 fui secretário de Cultura de Araçatuba, administração de Cido Sério (era PT). Ele fazia uma administração compartilhada, com reuniões de todos os secretários às segundas-feiras, 8h. Com isso, todos tomavam ciência dos problemas da cidade em todas as pastas.

Na época das chuvas, a enchente deixava as reuniões tensas, prefeito bravo, secretário de obras fungando. 

Prefeito Cido Sério determinou que os escombros das igrejas fossem retirados com pás escavadeiras, máquinas grandes. Era para chegar até a última pedra.

Pronto. Nenhuma pedra das igrejas demolidas, mas as grandes chuvas ainda provocam enchentes, menores, mas prejudiciais.

Numa das reuniões de segunda-feira, dos secretários, prefeito Cido Sério determinou ao secretário de Obras (vou omitir o nome dele propositalmente) que instalasse uma draga junto à lagoa das Flores. Na hora que a água subisse demais, ligasse o aparelho para jogar a água fora da lagoa.

Secretário de Obras se negou a fazer isso: “Vou ser gozado por meus colegas engenheiros. Não vai dar resultados”.

O prefeito Cido Sério estufou o pescoço e gritou:

– Se não fizer, está demitido a partir de amanhã!

A draga está funcionando até hoje. Não há mais enchentes na lagoa das Flores. E o engenheiro-secretário ficou com a cara no chão.

As duas versões explicaram o fato, cada uma de um jeito, mas com semelhanças. Tirar a última pedra foi um milagre, mas também fruto do raciocínio humano.

Sou pela ciência, mas se faz necessário incluir a tradição no rol dos conhecimentos humanos. Há a arte, a filosofia, a ciência, mas a tradição faz parte da estrutura cognitiva das pessoas.

Certamente, há casos pitorescos ocorridos nas administrações de outros prefeitos ou prefeitas, mas não presenciei tão de perto. 

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