SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando explicou seus planos para possíveis investidores, Júlia Vergueiro, 34, ouviu a pergunta que já esperava.
Aquele plano não era definitivo, não é? Se não desse certo, poderia haver uma flexibilização?
“Eu bati o pé que não. O pensamento sempre foi gerar recursos e dar lucro, mas ter um propósito, um ideal como pano de fundo”, explica ela.
Júlia é uma das criadoras da Nossa Arena, espaço na Água Branca, zona oeste de São Paulo, em que quatro campos de areia e três de society são alugados apenas para mulheres interessadas em jogar futebol. Oitocentas delas os utilizam por semana.
No final do ano passado, pela primeira vez foram pagos dividendos aos investidores. O faturamento foi de R$ 3 milhões.
“A gente fez um DRE [demonstração de resultado de exercício] em que 2,8% do empreendimento valia R$ 50 mil. Não fizemos nova avaliação para dizer quanto valem esses 2,8% hoje em dia. Mas quem investiu R$ 50 mil já recebeu seu dinheiro de volta”, diz.
A Nossa Arena nasceu da vontade de Júlia de dar às mulheres um espaço seguro para o futebol, sem preocupações em competir com homens pelo uso dos campos, e da visão de que existia um mercado a ser explorado.
Há também, como nas demais quadras de society, área de lazer com churrasqueiras, bares e mesas de sinuca. Servem para o que se convencionou chamar, no mundo do futebol, de “resenha”. A diversão pós-jogo.
Júlia diz que quando há homens e mulheres, surge a tendência de eles acharem um bom momento para passar cantadas nelas. E as meninas querem apenas se divertir, sem qualquer outra intenção.
Só há um grupo masculino que pode pisar nas quadras da Nossa Arena. O Sport Clube T Mosqueteiros tentou entrar em contato com a Nossa Arena porque estava desesperado por um espaço para jogar. A primeira resposta foi negativa. Isso mudou quando a história da equipe trans chegou a Júlia. Ela cedeu de graça um campo para eles treinarem duas vezes por semana.
“A gente tem entre 20 e 25 meninos. Sabemos o que as meninas sofrem, o que é ser excluído e não ter lugar para praticar. Passamos por um processo que é parecido com o delas. Fomos mulheres, reconhecidos dessa forma. Só que decidimos fazer a transição e sofremos uma exclusão dupla”, afirma Bernardo Gonzales, 35, um dos líderes do time.
Por causa deles, o Nossa Arena construiu banheiro não binário. Houve estranheza por parte das mulheres, no início. Depois se acostumaram, diz Gonzales.
“A gente aprende muito com eles. Vemos a necessidade de um local que não seja tóxico também para o coletivo trans”, afirma Júlia.
Se fossem pagar, teriam de desembolsar entre R$ 200 e R$ 280 pelo direito de usar um dos campos de society ou um valor entre R$ 700 e R$ 870 pelo plano mensal na Nossa Arena. Não havia nenhuma condição de os jogadores do T Mosqueteiros pagarem essa quantia.
“Os lugares gratuitos são muito disputados. A gente tentou ir a outros locais porque temos equipes de basquete e handebol. Nos espaços públicos são sempre muitos homens e algumas mulheres. Os caras vão tomando o espaço”, diz Gonzales.
A Nossa Arena virou a casa de uma equipe que admite ser coletivo político. Não se trata apenas de um time de futebol.
A proposta é dar a chance de diversão para homens trans que são excluídos no dia a dia, sofrem com problemas financeiros por não conseguirem emprego e atravessam dificuldades sociais.
“Society é uma modalidade esportiva cara. A gente não tinha dinheiro e as pessoas trans passam por processo de vulnerabilidade grande”, afirma o líder do T Mosqueteiros.
Patrocinado por Nike, Vivo, Centauro e SporTV, a Nossa Arena também já teve a chancela do Barcelona, e o escudo de um dos clubes mais famosos do planeta ajudou a trazer meninas interessadas em jogar.
Em horários ociosos, entre as manhãs e tardes, a empresa fornece espaço para o projeto social Em Busca de uma Estrela, que tenta encontrar jogadoras com condições para atuar em times profissionais.
O programa tem chancela da Lei de Incentivo ao Esporte. São 120 meninas que passam por período de treinamentos depois de serem aprovadas em peneiras.
“Querendo ou não, quando a gente joga em outros lugares, sempre tem aquelas piadinhas, o cara que fica de olho no corpo da pessoa. A gente não fica tão confortável, e se sentir bem com a roupa que vai jogar é importante. Na Nossa Arena não vai ter ninguém te secando, te deixando desconfortável. Tem muita troca e a gente cria vínculos. Cria amizades”, afirma Jéssika Trindade Nunes, 32, que atua pelo Namasfut, equipe criada por mulheres que jogam nos campos na Água Branca.
Para quem antes não aceitava ter um plano B, o objetivo de Júlia agora é dobrar a aposta. Ela quer abrir uma segunda unidade da Nossa Arena, sem se distanciar do propósito inicial. “Nossa missão é criar um espaço que seja sempre acolhedor”, diz.
ALEX SABINO / Folhapress