CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – “Eu me sinto violada. A casa é como o corpo da gente”, diz a aposentada Maria Juracy Aires, 69, olhando para as marcas de mãos humanas que se arrastam pelas paredes da sua casa própria, comprada em 1979. O imóvel, assim como todo o edifício no bairro Cabral, está totalmente depredado pelas sucessivas invasões de vândalos.
Ela é a única que resiste a vender o imóvel a uma construtora. A Plaenge Empreendimentos adquiriu os demais sete apartamentos do prédio de quatro andares. Aires também recebeu propostas de compra, mas se recusa a vender o seu apartamento.
Enquanto tenta na justiça que a construtora divida as despesas do condomínio com ela, o prédio é alvo de invasões cotidianas.
Procurada, a Plaenge informou que não ia se manifestar sobre o caso. No âmbito do processo, em uma contestação na primeira instância, em fevereiro deste ano, a construtora disse que a conservação do prédio demanda aprovação em assembleia.
No documento, a construtora diz que as assembleias condominiais foram extintas desde que a construtora começou o processo de compra dos apartamentos.
A Plaenge também argumenta que uma edificação “total ou consideravelmente destruída” pode ter sua venda deliberada em assembleia. “Sendo franco: a autora sabe que não conseguirá fazer prevalecer sua vontade em uma assembleia na qual será minoria”, aponta trecho da peça apresentada pela construtora. O processo corre na 9ª Vara Cível de Curitiba.
As semelhanças com o enredo de Aquarius (2016), filme franco-brasileiro, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e protagonizado por Sônia Braga, são inegáveis.
Maria manteve seu apartamento na capital do Paraná, habitado até meados de 2022, quando sua última inquilina encerrou o contrato. Assim que o prédio ficou vazio, invasores furtaram o sistema de segurança que ela havia mandado instalar.
Não demorou muito para que grades, portas, janelas, esquadrias e até mesmo a fiação do prédio também fossem levadas embora. Também foram levados aquecimento de gás, tubos, botijões e torneira.
Ao perceber o arrombamento, a aposentada chamou a Polícia Militar. “Isso aí é morador de rua. Enquanto o prédio estiver vazio, eles vão continuar entrando”, disse um dos oficiais, segundo Aires, recomendando que ela buscasse acordo com a construtora para contratar um serviço de segurança privado. O boletim de ocorrência foi encaminhado para a Polícia Civil e o caso segue em investigação.
Pela cotação da aposentada, o serviço de segurança custaria R$ 300 diários, o que ficaria inviável financeiramente para ela.
Aires comprou seu apartamento aos 25 anos, com dez notas promissórias e vinte anos de financiamento pela Caixa Econômica Federal. A primeira ideia, conta, seria abrigar a mãe quando ela se separou.
O condomínio foi escolhido por causa do amplo jardim, onde ela e a mãe plantaram as árvores frutíferas que hoje tomam o terreno. “Quando a gente olhava daqui para o centro, a única coisa alta que se via era a torre da Igreja do Cabral. Hoje em dia, o bairro está cheio de prédios chiques, mas nenhum tem o espaço que a gente tem aqui”, diz a aposentada.
Os três filhos de Maria nasceram e cresceram no apartamento, e os álbuns de família ainda guardam as memórias das festas na garagem e das brincadeiras no quintal.
Depois que se mudou para socorrer a mãe, que não conseguia mais subir as escadas do prédio, o imóvel serviu de moradia para seus filhos e guardou os primeiros anos de seu neto.
“Eu sempre cuidei desse espaço com muito carinho porque ele nos deu muito retorno em acolhimento”, conta.
Seu sonho, diz, sempre foi viver a velhice no prédio, respirando um pouco de ar puro e usufruindo de seu direito à memória. É por isso que, mesmo com a saúde frágil, Maria reafirma que o apartamento não está à venda.
Em tratamento de um câncer que se espalhou pela língua e pela garganta, a aposentada conta sentir medo de não conseguir mais falar da situação que sente ser injusta com seu imóvel.
Na opinião de Bruno Meirinho, advogado que representa Maria Aires, a deterioração do prédio começou na compra dos imóveis, em 2017, a fim de revitalizar o espaço posteriormente. “A ideia de que uma parte da cidade precisa ser destruída para ser reconstruída. Isso é um baita negócio”, afirma.
Em 2023, eles notificaram extrajudicialmente a construtora, pedindo para que ela mantivesse suas propriedades habitadas e contribuísse com a manutenção do condomínio, mas receberam propostas de compra como resposta.
Foi quando decidiram mover uma ação contra a construtora, alegando que a empresa está desviando a finalidade dos apartamentos ao não destiná-los à moradia.
“Os interesses financeiros não podem prevalecer sobre o direito que a pessoa tem à sua própria moradia, à sua própria história e aos seus vínculos com o lar”, afirma o advogado.
JESS CARVALHO / Folhapress