VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Os militares armados vigiando o pavilhão lacrado de Israel fazem uma performance às avessas nos Giardini da Bienal de Veneza, onde ficam as representações oficiais dos países.
Ao lado, está a casa dos americanos, onde artistas indígenas dos Estados Unidos cantaram e dançaram na tarde de abertura e onde também um coro de manifestantes chamou o presidente Joe Biden de genocida. Mais adiante, o pavilhão alemão foi alvo de gritos de “Estado nazista” do lado de fora e mostrou trabalhos de uma israelense radicada em Berlim do lado de dentro.
Esses três espaços, envoltos em tensão que extrapola o colorido mundo da arte movido a prosecco nestes dias, sintetizam o estado caótico de um planeta que nós destruímos, a ponto de nos sentirmos também estrangeiros na própria casa, tema central desta edição da mostra italiana. Tão estrangeiros que estamos em plena busca de uma rota de fuga.
O pavilhão alemão dá ares de ficção científica e verniz futurista a essa ideia. Do lado de fora, um monte de terra bloqueia a porta monumental do palácio, forçando o público a entrar pela lateral. Dentro, Yael Bartana mostra o protótipo reluzente de uma grande nave espacial, aquela que vai resgatar a humanidade e levar todos até outro planeta ainda não tóxico.
Nem todo mundo, no entanto, tem um lugar na nave. Os judeus vão primeiro, argumenta um rosto num televisor, dizendo que seria natural cada povo depois criar sua própria espaçonave e fugir para longe daqui, um lugar onde começar do zero.
É um tanto macabra a alegoria de Bartana, talvez uma alusão à história acidentada da formação do Estado de Israel, na ressaca de uma grande guerra e agora à luz do conflito sangrento entre seu país e o Hamas na Faixa de Gaza, que já matou mais de 30 mil.
Essa pilha insondável de corpos fez com que outra israelense, Ruth Patir, decidisse não abrir sua exposição no espaço israelense, a poucos metros do pavilhão dos alemães. Um cartaz na porta diz que a inauguração depende de um cessar-fogo imediato e a libertação dos reféns da guerra. Enquanto isso, continuam plantados firmes ali os militares com cara de poucos amigos.
Bartana, em sua exposição, ainda mostra um filme ao lado de sua nave. Nele, homens e mulheres dançam numa roda vestindo trajes que remetem aos gregos da Antiguidade. O balé conclama a figura de um rapaz musculoso quase pelado segurando uma tocha acesa. Ele aponta para o céu e incendeia o cosmos, sinal de partida para uma nova civilização, com seus mitos fundadores e tudo.
Não há nada de bom para deixar para trás, aliás. É o que mostra Ersan Mondtag, alemão de origem turca, no mesmo pavilhão. Ali ele construiu a réplica da casa do avô que morreu contaminado por amianto depois de trabalhar quase três décadas numa fábrica de cimento na Alemanha.
Sujos de pó, atores dentro da estrutura encarnam os fantasmas do operário, figuras tristes imersas na rotina doméstica de um apartamento em ruínas.
É de precarização, estafa e morte que muitos trabalhos falam em toda a mostra. Doruntina Kastrati, artista que representa o Kosovo e venceu a láurea de menção honrosa do júri da Bienal de Veneza, trilhou um caminho menos teatral para mirar o mesmo problema.
Suas esculturas minimalistas de verniz metálico, tons dourados e acobreados, remetem tanto às nozes que são ingrediente de um doce tradicional de sua região quanto ao formato das próteses de joelho que muitas mulheres que trabalhavam na fábrica desses doces tiveram de implantar depois de décadas de trabalho extenuante em pé.
Se elas sobreviveram, mesmo que com um corpo estranho enxertado nas pernas, outros não ficaram para contar sua história. O pavilhão australiano, grande vencedor da mostra com o Leão de Ouro de melhor representação nacional, constrói um memorial para seus indígenas mortos em séculos de exploração.
É um altar seco, em que milhares de certidões de nascimento e morte, um intervalo curto entre os dois eventos, se empilham numa mesa no centro de uma sala escura rodeada por um espelho dágua. De longe, esses volumes de papel lembram construções mais altas ou mais baixas na maquete de uma cidade. Não é acidental.
Archie Moore, artista de ascendência aborígene que representa os australianos, parece dizer com delicada sofisticação que os alicerces de sua sociedade estão fincados na mortandade e no extermínio dos povos nativos da terra, como se a base da construção de tudo fossem esses cadáveres reduzidos a pó e pilhas estéreis de documentos, registros de chacinas e epidemias trazidas pelos brancos.
Em volta deles, Moore desenhou com giz nas paredes uma árvore genealógica vertiginosa, que representa 65 mil anos de ancestralidade aborígene, cada nome e ramo familiar encerrado num retângulo, um empilhado sobre o outro, como tijolos formando uma grande muralha.
É de outra ordem a construção de Sandra Gamarra Heshiki, no pavilhão espanhol. Transformando a arquitetura despojada do espaço, a artista peruana radicada em Madri, mais uma estrangeira em todo lugar, ergueu paredes e adornos de pendor clássico para formar uma tradicional pinacoteca, um gabinete de curiosidades à moda antiga.
Isso, no entanto, é só a superfície. A ala de paisagens, por exemplo, mostra visões do novo mundo à moda dos artistas viajantes da época das grandes navegações, mas sobre as matas e mares estão escritas frases de pensadores, entre eles o brasileiro Ailton Krenak, lembrando que as composições do idílio pintado por aqueles a serviço dos conquistadores deixava para fora do quadro os antigos donos da terra, aqueles que seriam explorados e depois exterminados.
O museu de mentira de Heshiki também lembra vítimas mais recentes. A sala dedicada a representações da flora, com belos e delicados desenhos de plantas e flores em que se misturam também alguns membros decepados de corpos humanos, traz o rosto de Marielle Franco como a raiz de um hibisco cor-de-rosa.
Um dos pavilhões mais aclamados desta Bienal de Veneza, com longas filas na porta, a Espanha da artista é forçada a encarar seu passado de atrocidades numa montagem precisa e irônica, ao mesmo tempo em sintonia com a consciência agora tão na moda entre as grandes potências de lavar com a beleza das artes visuais a roupa suja de séculos de história.
Nada, afinal, é tão branco, sem máculas, quanto o cubo branco de uma galeria, cenário neutro para mostrar obras de arte inocentes só que não.
O pavilhão holandês, também uma obra-prima de humor sombrio, se esforça para construir um ataque ao próprio mundo da arte do qual faz parte, num exercício ácido da chamada crítica institucional, aquilo de roer por dentro as engrenagens do sistema que se tornou uma vanguarda artística já bem documentada nos livros de história.
No prédio modernista dos holandeses, o coletivo Cercle dArt des Travailleurs de Plantation Congolaise, ativistas que tentam recuperar as suas terras exauridas na República Democrática do Congo, mostram esculturas de argila revestidas de cacau e azeite de dendê, dois dos produtos do velho império colonial belga.
Não são bonitas de ver. Uma retrata um estupro, baseada num caso real de um oficial belga que violentou uma mulher numa das investidas coloniais para subjugar trabalhadores escravizados. Outra é uma alegoria que fala à brutalidade do mundo da arte atual. Mostra a figura de um colecionador cavalgando um touro bravo, símbolo da voracidade do capital que faz mover esse mercado e da euforia desmedida em torno do circuito.
Todo o jet-set que frequentou esses dias de festa em Veneza, aliás, teve seus passos dentro da galeria nos Giardini transmitidos em tempo real para a plantação em Lusanga, na República Democrática do Congo, onde uma galeria gêmea funciona como embaixada.
É a síntese orwelliana de um mundo em curto-circuito, espelho do paradoxo que Ailton Krenak já havia notado em suas “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”. Estamos falando do abismo que separa aqueles que precisam viver de um rio daqueles que consomem os rios para viver.
SILAS MARTÍ / Folhapress