SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A seca e a fome atingem uma vila em Ruanda, quando o tempo ainda é o da colonização belga. Crianças e homens são forçados a trabalhar, e as colheitas são confiscadas. Aldeões apelam a um ritual ao antigo rei, Kibogo, para fazer voltar a chuva, em conflito com os padres brancos católicos.
A espiritualidade é a tônica de “Kibogo subiu ao céu”, livro da escritora ruandesa radicada na França Scholastique Mukasonga, em pré-venda pela editora Nós. No romance, a autora de “Baratas”, “A mulher dos pés descalços” e “Nossa Senhora do Nilo” explora agora o impacto da cristianização trazida pelos europeus.
No início do século 20, Ruanda era uma monarquia administrada pela Bélgica. Em 1931, o rei ruandês Yuhi Musinga, relutante ao catolicismo imposto pelos europeus, foi deposto pelos administradores belgas. O reinado de seu filho e sucessor no trono, Mutara, levou a maioria dos ruandeses a adotar a religião.
Após o genocídio de mais de 800 mil tutsis em 1994, a Igreja foi criticada não só pela cumplicidade no massacre, mas também pela participação na divisão étnica que fraturou o país.
“Os líderes religiosos não condenaram as violências e deixaram que a estação de rádio assassina de Mille Collines afirmasse que os massacres tinham a aprovação de Deus. As igrejas foram os principais locais dos assassinatos, e por muito tempo a Igreja Católica se contentou em condenar o comportamento individual sem admitir uma responsabilidade institucional”, disse Mukasonga em entrevista por email.
Nascida no país africano, a escritora estava na França em abril de 1994, quando o genocídio ocorreu. Dois meses depois ela recebeu uma carta com uma lista dos 37 nomes de familiares que tinham permanecido em Ruanda e haviam sido assassinados. Levou dez anos para juntar forças e revisitar o país.
Escrever, para ela, foi uma forma de dar sepultura aos mortos. E a volta à história de Ruanda em “Kibogo subiu ao céu” é uma forma de retornar às raízes do genocídio, diz ela. Segundo a escritora, a antropologia racial europeia colaborou para a construção da falsa ideia de que tutsis não seriam nativos do território ruandês, pensamento que contribuiu para o ódio contra a minoria.
“No momento decisivo da independência, quando o poder foi tomado em 1962 por intelectuais hutus formados em seminários católicos onde aprenderam essa ideologia racista, os tutsis eram considerados invasores, estrangeiros que precisavam ser expulsos ou erradicados. Trinta anos depois, essa ideologia justificaria o genocídio dos tutsis”.
O massacre completa 30 anos em 2024, e Ruanda tem conquistado patamares de destaque entre os países africanos.
“Como posso não me orgulhar de meu país hoje? Fala-se do milagre ruandês, e os economistas descrevem com frequência os sucessos de Ruanda: uma taxa de escolarização de 90% até os 16 anos, seguro-saúde para 80% da população, hospitais com drones, um país com alta tecnologia onde é possível pagar suas compras, contas e impostos pelo celular. Os sociólogos enfatizaram o lugar de destaque ocupado pelas mulheres em todos os campos”, diz Mukasonga.
A particularidade do genocídio de Ruanda, segundo ela, é a de que o massacre aconteceu entre vizinhos, que hoje vivem lado a lado após um longo processo de reconstrução. “O caminho para a reconciliação é árduo, mas não há outro. Não se trata de ocultar o genocídio, mas de ter consciência lúcida de um passado que não deve prejudicar o futuro”.
MANUELA FERRARO / Folhapress