SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – À primeira vista, o Plano 75 que dá nome ao filme de Chie Hayakawa é uma ficção mais que distópica: trata-se da ideia de um governo, o japonês, oferecer aos idosos com 75 anos ou mais uma morte tranquila, com garantia de funeral pago e mais uns cobres para se divertir nos últimos dias.
Será que o Japão, ex-segunda maior potência econômica do mundo contempla desde já sua decadência? Pode ser. Mas, olhando o estado do mundo, talvez não seja algo tão localizado assim absurdo. Afinal, no Japão, como no resto do mundo, a média de idade sobe, enquanto a natalidade cai.
A própria China já está sentindo o problema. Na Europa, que sofre com isso há décadas, parece que a solução é jogar ao mar os jovens candidatos à imigração, pois embora eles possam renovar esse continente, trazem com eles o sangue dos antigos colonos, que os antigos colonizadores entendem como desvirtuação das sagradas culturas locais.
Bem antes que a superpopulação surgisse como um problema e a extinção de uma parte das pessoas soasse como solução plausível (para algumas pessoas, em todo caso), o Japão, ou ao menos uma de suas aldeias, já havia firmado uma tradição sobre o assunto, ao menos se acreditarmos em “A Balada de Narayama” (1983): ali se trata de uma aldeia que sofre com a falta de alimentos e decide que os habitantes mais jovens devem levar os parentes septuagenários até o alto de uma montanha, onde fatalmente morreriam.
No filme de Shohei Imamura, no entanto, algo se diferencia: os filhos devem carregar os velhos nas costas, como fazendo uma espécie de sacrifício que expie sua culpa pelo ato abjeto que praticam. Em todo caso, ali os velhos são sacrificados para que os mais jovens sobrevivam. Em “Plano 75”, doces palavras publicitárias (e se trata de um plano de Estado), mais as condições precárias de existência, buscam induzir o suicídio do público-alvo do plano.
“Plano 75” reforça a óbvia desumanidade do plano não só ao apontar quem são os mais aptos a aderir ao plano, como por criar em torno deles um mundo de aparente ternura (o tratamento que recebem dos funcionários é sempre gentil e delicado), porém regido por uma frieza tecnocrática absoluta. O objetivo é que uma categoria de cidadãos consinta com o próprio extermínio.
Vale notar que a questão do extermínio de uma parte da população não é assim tão original no cinema. Da Coreia, onde uma parte do cinema é tremendamente atraída pela violência, saiu “Round 6”, abominável peça de matança, que atingiu, aliás, sucesso mundial.
Em jogos terríveis ou em planos sutis, emerge a ideia de que vidas só podem permanecer vivas enquanto úteis, rentáveis, enquanto não sejam o que alguns chamam de “peso para o Estado”.
Diante de um tema que inspira horror, a direção de Chie Hayakawa para “Plano 75” não evita a ironia, mas foge de qualquer sentimentalismo, o que é uma decisão sábia: quanto mais enfatiza a racionalidade do plano, mais evidencia a insânia que contém.
É nessa medida que os jovens funcionários do serviço, que a princípio parecem perfeitos burocratas, são os agentes através dos quais o filme introduz as fissuras do sistema.
Há outra, e bem rápida notação a atravessar o filme de Hayakawa, que é passagem aqui e ali de mães com bebês. Como se lançasse a pergunta: se existe excessivo envelhecimento, se a vida é prolongada de maneira até abusiva –que seria, entre outros, obra da indústria farmacêutica, como postula, por exemplo, Jean-Claude Bernadet em seu livro “Wet Mácula: Memória/Rapsódia”–, não seria talvez plausível perguntar, entre outras, por que as pessoas perderam a vontade de ter filhos?
Enfim, à força de inteligência e contenção na exposição, “Plano 75” transborda largamente a questão de que lugar reservar aos velhos deste mundo, para perguntar, entre outras, o que este velho mundo deseja para si mesmo.
A presença da atriz Chieko Baishô no papel central do filme sem dúvida ajuda “Plano 75” a ser algo mais que um filme interessante. Também mais do que interessante é a estreia eficiente e sensível de Chie Hayakawa.
PLANO 75
Quando: Em cartaz nos cinemas
Classificação: 14 anos
Elenco: Chieko Baishō, Hayato Isomura, Stefanie Arianne
Produção: Japão, França, Filipinas, 2022
Direção: Chie Hayakawa
Avaliação: *Muito bom*
INÁCIO ARAUJO / Folhapress