BREVES E MELGAÇO, PA (FOLHAPRESS) – A fome ronda casas de madeira suspensas em uma área de várzea, em um igarapé na periferia e na beira de rios profundos que compõem a paisagem do lado ocidental do arquipélago do Marajó.
A cultura do açaí, a pesca do camarão e o Bolsa Família se mostram insuficientes em residências com famílias numerosas; a insegurança alimentar vira rotina para muitas delas. Mais um passo, e a fome se instala na dispensa de casa.
Os filhos de Francidalva Mendes Santos, 37, abriam a portinha de madeira da dispensa simples de casa várias vezes no dia, um sábado chuvoso no rio Mujirum, que está na rota de Melgaço (PA). Acharam apenas farinha e margarina.
“Hoje eles só comeram isso, farinha”, disse Dalva, como é conhecida. “Quando é assim, eu apanho e amoleço umas frutinhas de miriti que caem no fundo.”
A casa de Dalva está isolada, não é ladeada por vizinhos, como é mais comum em comunidades ribeirinhas no Marajó. São várias casas assim, mais espaçadas. É nesses espaços que a fome se instala mais rotineiramente.
Dalva tem oito filhos. O mais velho tem 21 anos. A mais nova, dois meses. A coleta de açaí e a pesca tradicional do camarão, por meio de uma armadilha de madeira que emprega uma técnica passada de geração em geração, incrementam a renda da família.
Mas o açaí é pouco, e padece de falta de manejo para incremento na produção, uma reclamação comum a quase todos os ribeirinhos. O camarão está cada vez mais escasso, uma constatação unânime nessa região da amazônia atlântica influenciada por um regime de marés.
Na casa de Dalva, é o Bolsa Família de R$ 1.290,00 a fonte de renda principal. Enquanto os filhos comiam farinha, o marido tentava, mato adentro, caçar jabuti e bicho-preguiça, integrados à dieta de ribeirinhos.
Também no rio Mujirum, a família de Vanderlei Nunes dos Santos, o Leu, 48, come todos os dias, como ele afirma. “Mas nem todo dia tem três refeições”, diz.
São oito filhos, dez pessoas na casa. A mulher recebe Bolsa Família no valor de R$ 650. “Tem vez que falta comida. É uma vida trabalhada, a gente vai levando devagar”, afirma Leu, que segue a mesma rotina de outros ribeirinhos: colhe açaí, pesca camarão, caça preguiça.
A insegurança alimentar é uma constante também nas franjas das cidades do Marajó, como na “curva do S” em Melgaço, uma área de várzea conectada à terra firme por uma estreitíssima e cambaleante ponte de madeira, improvisada pelos moradores, e o Jardim Tropical, uma invasão que foi ocupando os espaços que margeiam um igarapé, na periferia de Breves (PA).
A fome, ou mesmo a insegurança alimentar, é o que há de mais urgente em lugares desassistidos do Marajó, sem a presença do poder público. Mas falta muito mais, e nenhuma cidade é mais emblemática dessa realidade do que Melgaço, que tem o pior IDH (índice de desenvolvimento humano) do país.
O último IDH por município é de 2010, e é nesse ranking que Melgaço ocupa a 5.565ª posição. O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que formula o indicador, espera apresentar novos IDHs municipais em 2024.
Não se sabe o que um novo ranking vai mostrar, mas a realidade que a Folha encontrou em Melgaço parece compatível com o indicador de 14 anos atrás.
A fome de crianças ribeirinhas se estende a escolas rios adentro. É comum que meninas e meninos percorram horas de barco no trajeto até a escola e encontrem dias letivos sem merenda. Elas saem de casa e voltam para casa com fome, como relatam pais e educadores de escolas na área rural -nas comunidades ribeirinhas- de Melgaço.
A merenda mais comum, quando tem, são bolachas de água e sal e suco ou mingau. O transporte escolar em lanchas também é falho, enquanto cinco barcos para esse transporte estão abandonados num lote baldio na cidade, assim como ambulância, ônibus escolares, tratores.
Alguns meses letivos não têm mais do que 12 dias de aula. No rio Tajapuru, a estrutura da Escola São Miguel tem partes comprometidas. O sistema de abastecimento não funciona, e a unidade ficou um tempo sem água. Não há bebedouro. Não há freezer para armazenamento de alimentos da merenda. A biblioteca foi desativada para abrigar uma turma de terceiro ano do ensino médio.
O prefeito da cidade, Tico Viegas (União Brasil), afirmou à reportagem que há falta de merenda porque “o dinheiro do governo federal ainda não tinha caído” e porque “a licitação ainda não ficou pronta”. “São R$ 2.000 por escola, é muito pouco. Dá pra 12, 13 dias de aula no mês.”
Os repasses para transporte escolar também são insuficientes, segundo Viegas. O abandono de barcos é anterior às suas duas gestões, afirmou.
Educadores dizem que o prefeito loteou entre os vereadores os cargos de professores nas escolas. São os vereadores que fazem as indicações, e não há outra forma de assumir as salas de aula, segundo os profissionais ouvidos pela reportagem.
“Quem contrata os professores é a secretaria. Os vereadores não mandam na prefeitura”, disse Viegas. Conforme o político, houve uma tentativa de fazer um concurso público em 2023, mas não teria havido tempo hábil para isso.
No porto de Melgaço, um barco destinado a assistência social nas comunidades está abandonado. Não há água encanada em boa parte da cidade; os moradores recorrem a bombeamento de poços, até mesmo em áreas mais centrais. Não há coleta de esgoto.
No dia em que a reportagem chegou à cidade, 5 de abril, as ruas estavam tomadas de cabos eleitorais -vestidos com camisetas azuis do União Brasil- em campanha antecipada para o candidato do prefeito. O pretexto era a filiação partidária do pré-candidato.
“Era o fim do prazo para filiação. Os grupos convidam e o povo vai”, disse o prefeito.
Sobre a fome, Viegas afirmou que “ajuda e investe na agricultura familiar”, principalmente na produção de açaí e farinha. “Melgaço não tem empresa. É só a prefeitura que emprega.”
Dos 28 mil moradores da cidade, 22 mil são atendidos pelo Bolsa Família, que se mostra a principal fonte de sustento para a maioria das famílias da região, especialmente nas comunidades ribeirinhas, onde está a maior parte da população.
Quatro em dez pessoas são extremamente pobres, segundo dados levados em conta pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Os indicadores são semelhantes em Breves, a maior cidade do arquipélago, e em outros municípios da região.
Um relatório do Ministério dos Direitos Humanos, que lançou em 2023 um programa chamado Cidadania Marajó, lista outros indicadores das 17 cidades do arquipélago. Apenas 8,2% da população de 18 a 65 anos tinha emprego formal em 2021, ante 20,6% no Pará e 34,4% no Brasil. A cobertura de atenção primária em saúde era de 32,3% em 2023, enquanto no país estava em 75,1%.
Também são maiores no Marajó, se comparadas às médias nacionais, as taxas de abandono no ensino fundamental (4,4%) e no ensino médio (20,3%), de inexistência de abastecimento de água (72,6%) e de falta de coleta regular de lixo (67,8%).
Em nota, o ministério disse que houve ações emergenciais e distribuição de 6.000 cestas de alimentos em dezembro e no começo do ano. Um acordo para instalação de tecnologias de acesso a água contempla iniciativas de inclusão produtiva e beneficiará 4.600 famílias rurais de baixa renda, afirmou.
Outro acordo, de cooperação técnica, vai disponibilizar “transporte escolar fluvial adequado para as especificidades geográficas da região”. “Por meio de cooperação com o Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação, haverá suplementação de recursos para a merenda escolar culturalmente adequada.”
O governo do Pará afirmou, em nota, que garante segurança alimentar e nutricional a 7.000 famílias no estado e que, no Marajó, gerencia um programa de aquisição de alimentos, com compras de produtos de agricultores familiares e destinação a pessoas em insegurança alimentar. Desde 2023, 127 famílias foram atendidas, disse.
Nas escolas estaduais, as aulas são dadas com normalidade e o valor individual da merenda subiu 416%, afirmou o governo do Pará. “Esse valor é destinado às prefeituras que aderiram ao plano de alimentação escolar.” Em Melgaço, a logística da merenda é feita pela secretaria estadual. Municípios do Marajó recebem recursos de um programa de transporte escolar, cita a nota.
Para além da “curva do S”, em Melgaço, numa área de várzea alagada, não há rua, calçada, água encanada, coleta de esgoto e coleta de lixo. As portas das casas são acessadas por uma ponte de madeira formada por duas tábuas enfileiradas, suspensas sobre uma água de coloração escura.
Dileia Barros, 41, comprou um terreno por R$ 1.300 e ergueu uma casa de madeira no bairro. Ela tem dez filhos. Josué, 5, teve meningite no primeiro ano de vida, o que comprometeu movimentos do corpo. Dileia precisa carregá-lo nos braços, pela ponte estreita, quando há consultas médicas.
O Bolsa Família de R$ 1.000,00 é a principal fonte de renda, complementada por bicos feitos pelo marido e pelo açaí.
“Às vezes falta comida, e a gente só vai comer no fim de tarde”, diz Dileia. “À noite, às vezes é tomar um café e ir dormir.”
A insegurança de não ter comida -ou a falta efetiva de alimentos- se repete em outros espaços urbanos do Marajó. Numa casa suspensa num igarapé na periferia de Breves, Maria de Fátima da Silva, 43, espera uma oportunidade para voltar à sua comunidade, no rio Mujirum. Ela buscou a cidade para destravar o Bolsa Família que recebe.
Três adultos e nove crianças estão há uma semana numa casa de madeira e telhado de zinco, de dois cômodos, rodeada por água e lixo. O bairro se chama Jardim Tropical. Não há dinheiro para a gasolina do barco, ancorado no igarapé. Falta comida, diz Maria de Fátima, que se vira com cestas básicas de um programa municipal de assistência social.
“Acho ruim estar aqui”, diz a mulher. “Na cidade, todo dia eu tenho de comprar. No mato, eu pesco um peixe, faço uma caça, tenho roça de macaxeira.”
VINICIUS SASSINE E LALO DE ALMEIDA / Folhapress