PM paulista dispensou teste de dano da bean bag, munição que matou torcedor

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Polícia Militar de São Paulo dispensou a realização de testes para verificar o potencial de dano da “bean bag”, munição que foi comprada para substituir balas de borracha e deixou uma pessoa morta em setembro do ano passado.

Documentos que descrevem o procedimento que avaliou os lotes de bean bag vendidos ao governo estadual mostram que, na análise balística, não havia exigência para que a energia cinética dos projéteis fosse aferida. Esse procedimento mostraria o trauma que a munição poderia causar na pele de uma pessoa. Poderia indicar também a se a munição, usada como armamento não letal, tinha chances de causar morte.

Foi o que ocorreu em setembro do ano passado. O torcedor são-paulino Rafael dos Santos Tercilio Garcia, 32, morreu após ser atingido na cabeça por uma bean bag durante a comemoração do título do seu time na Copa do Brasil, no entorno do estádio do Morumbi, na zona oeste da capital.

Questionadas sobre a falta de exigência do teste, a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) não respondeu.

A análise de energia cinética é uma exigência, por exemplo, na avaliação das balas de borracha que são compradas pela PM. A comparar-se os procedimentos técnicos aplicados às duas munições não letais, vê-se que a falta do teste de trauma é a única diferença entre eles.

No caso das balas de borracha, a PM exige que sejam feitos testes com uma caixa de massa com plastilina, um tipo de argila sintética que pode ser usada para simular a pele humana. O procedimento técnico padrão manda também que a plastilina seja revestida com algodão, nylon ou tecidos com resistência similar ao jeans, e que sejam feitos disparos a uma distância de 20 metros.

Nesse teste, se um só tiro provocar uma cratera maior do que 44 cm na argila sintética, essa é considerada uma falha crítica e o produto é automaticamente desclassificado.

Com as bean bags, esse teste foi retirado das exigências para compra do material. A PM pediu inspeções visuais das embalagens e cartuchos, das medidas da munição, de velocidade dos disparos, da precisão dos tiros e do manuseio da arma com a munição -para verificar se ela fica emperradas em algum estágio entre o carregamento, a extração e o disparo, por exemplo. Todos esses testes também são exigidos nas compras de balas de borracha.

Setor da PM foi questionado por fornecedor

O CMB (Centro de Material Bélico), setor responsável pela compra de armamentos da PM, foi avisado sobre a falta do teste por um dos concorrentes da licitação. A empresa Condor afirmou que, no edital de compra das bean bags, não havia “nenhuma forma de controle quanto a esse trauma”, e avisou que essa era uma exigência na compra de outras munições não letais.

“Esse equívoco deve ser de imediato afastado, posto que os parâmetros de segurança que caracterizam uma munição de impacto controlado são: precisão e trauma”, diz a empresa, num documento apresentado ao CMB. A Condor considerava que o pregão deveria ser suspenso para correção do que considerava erros no edital.

A resposta ao questionamento foi de que “há critérios definidos em estudos publicados por órgãos internacionais que embasaram a formulação das especificações técnicas”, ou seja, que esses estudos eram suficientes para que a PM dispensasse um teste próprio.

Em resposta à empresa, a corporação também afirmou que o procedimento que incluía teste de trauma é aplicável às balas de borracha e similares, mas não se mostrava “eficiente em materiais com outra composição ou forma de atuação, como por exemplo o ‘Bean Bag’ ou projéteis lançados por mecanismos de ar comprimido”.

A Folha de S.Paulo questionou a PM sobre a falta do teste três vezes por email, ao longo de uma semana, através de sua assessoria de imprensa. Na última sexta-feira (19), a reportagem também questionou a SSP sobre o assunto por email. Nenhuma resposta foi enviada até a publicação deste texto.

O que é a bean bag?

Bean bag -ou saco de feijão, em inglês- é um tipo de munição que foi comprada pela Polícia Militar paulista com a intenção de substituir gradualmente as balas de borracha.

O projétil é produzido com aramida, uma fibra sintética, contendo pequenas esferas de chumbo em seu interior, confeccionada de forma a possuir uma cauda estabilizadora.

Seu uso é orientado por um documento publicado em abril de 2022. Há diversas advertências para quem usar uma arma com essa munição. A orientação do fabricante é que o policial deve manter uma distância mínima de 6,1 metros do alvo, e prestar atenção em obstáculos ou pessoas a menor distância que possam ser atingidos.

A distância mínima só pode ser deixada de lado em casos específicos de emergência, como situações que coloquem em risco a vida do policial ou de outras pessoas. Por exemplo, se um infrator portar artefatos explosivos, rojões e morteiros.

A bala de borracha, por sua vez, tem uma faixa de utilização entre 20 a 30 metros do alvo, conforme descrição de um de seus fabricantes.

Outro cuidado especificado na orientação aos policiais é em relação à parte do corpo a ser atingida. Se o local for de aclive ou declive, o policial militar deverá considerar o seu posicionamento em relação ao agressor, mantendo sempre os disparos na região dos membros inferiores, diz trecho do documento.

Entre as possibilidades de erro listadas estão: fazer disparos na região de cabeça, pescoço, órgãos genitais, mamas femininas e em mulheres grávidas, crianças, idosos ou pessoas visualmente incapacitadas.

Mesmo após a morte do torcedor são-paulino, e a constatação de que a bean bag havia causado a morte, o governo Tarcísio comprou 50 mil novas munições, em dezembro. Elas foram fornecidas pela empresa Defense Technology por US$ 5,59 cada uma, algo em torno de R$ 27 na cotação atual. O valor total gasto foi de US$ 279,5 mil, o equivalente a R$ 1,3 milhão, aproximadamente.

TULIO KRUSE / Folhapress

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