SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Vocês sabem quem ele é, né? Senna, o melhor!”
Adelaide, na Austrália, havia sido palco da última etapa do campeonato de 1993. Ayrton Senna -cuja morte completa 30 anos nesta quarta-feira (1º)- foi o vencedor da corrida, mas Alain Prost, seu rival de longa data, o campeão. Para celebrar o fim de uma temporada que encerraria seu contrato com a McLaren, o brasileiro tricampeão mundial de F1 decidiu ir ao show da cantora Tina Turner.
Turner avistou Senna e o chamou ao palco. “Você é simplesmente o melhor, melhor do que todo o resto, melhor do que qualquer um, qualquer um que já conheci”, declamaram público e cantora ao piloto, envergonhado.
Naquele momento, o menino Ayrton já era a lenda Senna. O garoto criado na região da serra da Cantareira, na zona norte da cidade de São Paulo, transformou-se em um ícone, uma metamorfose que pode ser resumida em alguns momentos.
AYRTON E MÔNACO: O INÍCIO DE UMA PAIXÃO
Sentado na mureta dos boxes da F1 em Monte Carlo, Ayrton fitava a parte da pista onde se formaria o grid de largada para o Grande Prêmio de Mônaco. Esta seria apenas sua sexta corrida na F1, já que estava em seu ano de estreia. Sua posição era a 13ª.
Se hoje a ideia de alto nível de pilotagem na chuva remete a Senna, isso começou a ser construído no GP de Mônaco de 1984. O principado amanheceu sob chuva torrencial. Logo na primeira volta, Ayrton ultrapassou quatro carros. Ao fim da décima volta, ocupava a sétima posição.
Na ponta do pelotão, Alain Prost, que largou na pole position, e Nigel Mansell davam a impressão de que seriam os postulantes à vitória. Até que o britânico bateu sua Lotus na subida para a curva do Cassino. A essa altura, Ayrton ultrapassara Michele Alboreto, Keke Rosberg e René Arnoux. Com o abandono de Mansell, estava na terceira posição.
À sua frente, então, o brasileiro tinha Niki Lauda, companheiro de equipe de Prost na McLaren e conhecidamente habilidoso. Na curva Saint Devote, a sapiência de um campeão mundial sucumbiu à voracidade de um estreante. Senna fez um traçado por fora e o ultrapassou. Sua missão passara a ser, portanto, alcançar Prost.
Enquanto alguns pilotos pareciam estar deslizando em gelo fino, a Toleman de Senna era ávida, assertiva e rápida. Pouco mais que dez giros foram necessários para Ayrton alcançar Prost, até que o diretor de prova Jacky Ickx encerrasse a corrida por julgar incabíveis as condições da pista. O francês foi declarado vencedor, e Senna ficou em segundo, celebrando seu primeiro pódio na F1 em sua estreia pelas ruas de Mônaco.
A PRIMEIRA POLE E A PRIMEIRA VITÓRIA NA F1
Após sua temporada de estreia na F1, com a Toleman, Ayrton assinou com a Lotus em 1985. A temporada que começou com o GP do Brasil, no hoje extinto circuito de Jacarepaguá, onde o piloto brasileiro enfrentou uma falha elétrica que o tirou da disputa pelo pódio.
Na segunda etapa do ano, o GP de Portugal, em Estoril, seria onde Ayrton lutaria pelos primeiros pontos naquele campeonato. No circuito português, cravou sua primeira pole position na F1, com 0s413 de vantagem em relação a Prost, que teve de largar na segunda posição do grid.
Estoril amanheceu naquele 21 de abril de 1985 sob chuva. Dos 26 pilotos que se classificaram, apenas nove terminaram o GP de Portugal. Já na largada, Ayrton abriu uma vantagem significativa e, em poucas voltas, desapareceu na distância. Ali ficou claro que, com a Toleman, a Lotus ou qualquer outro carro, o talento era enorme.
A CONQUISTA DO PRIMEIRO TÍTULO NA F1
Em 1988, a McLaren e seus dois pilotos, Ayrton e Prost, eram considerados o “dream team”. O brasileiro havia vencido sete dos primeiros 14 GPs, e o francês, seis -Gehrard Berger, da Ferrari, triunfara no outro.
Em Suzuka, no Japão, a vitória seria suficiente para Ayrton conquistar o campeonato e não ter de prorrogar a batalha com o francês para a Austrália, palco da última etapa.
Desde os treinos, Senna se mostrava determinado, e sua McLaren parecia corresponder à sua ânsia pela vitória. Entretanto, um aspecto épico e um tanto dramático se adicionou à história: o carro de Ayrton, que largava na pole position, morreu.
Fim de um sonho? Não. O brasileiro se aproveitou da inclinação do circuito de Suzuka e fez a McLaren pegar no tranco. Ao fim da primeira volta, o brasileiro reconquistou oito das 16 posições que perdera. Mais alguns giros se passaram, e Ayrton se colocou na terceira posição, com Prost e Ivan Capelli à frente.
Os líderes se embaralharam com os retardatários, o suficiente para que Senna ultrapassasse Capelli na 19ª volta. Ayrton voltou sua mira a Prost, que, no 28º dos 51 giros, viu o brasileiro estampado no espelho retrovisor. O brasileiro ultrapassou o francês em manobra na reta dos boxes.
Com os punhos erguidos e com a viseira de seu capacete verde e amarelo levantada, Ayrton comemorava o primeiro de seus três títulos mundiais na F1.
A PRIMEIRA VITÓRIA EM CASA
Senna chegou à temporada de 1991 já com dois títulos mundiais, 52 pole positions e 26 vitórias, mas jamais vencera em casa.
Naquele ano, a Williams era rival da McLaren, e os pilotos Ricardo Patrese e Nigel Mansell trabalharam para impedir o triunfo de Ayrton no GP do Brasil.
Após ter largado na pole position, o brasileiro utilizou a vantagem de seu carro nas retas para abrir vantagem em relação a Mansell, que vinha em segundo. O inglês diminuiu a diferença e tentou aproximar-se do brasileiro duas vezes, mas em ambas a Williams erroneamente parou Mansell para fazer o pit stop, o que fazia o inglês retornar à pista com grande desvantagem em relação a Ayrton.
Para piorar a situação, Mansell rodou e quebrou o câmbio de sua Williams, o que fez de Patrese aquele que poderia ameaçar a vitória de Senna. Nesse ponto, no terço final da prova de 71 voltas, o brasileiro perdera da primeira à quinta marchas, restando somente a primeira. Mas acontece que Patrese não estava correndo para alcançar Ayrton, pois a Williams pensava que a McLaren estava apenas gerenciando o ritmo.
Quando a Williams percebeu que havia algo de errado, deu o aviso a Patrese, que fez a desvantagem cair para 5s446 faltando três voltas para o final. Interlagos, que antes sorria, ficou tensa. A atmosfera pesou, e uma garoa fina se transformou em chuva.
Senna resistiu. Com apenas a sexta marcha, venceu pela primeira vez em casa.
O TRICAMPEÃO MAIS NOVO DA HISTÓRIA
Além das polêmicas que antecederam a temporada, 1991 foi um dos campeonatos mais complexos que Senna enfrentou. Muitos fãs o consideram o melhor do craque.
Ayrton começou o ano vencendo as quatro primeiras corridas, porém, quando a Williams solucionou seu problema de confiabilidade, o motor Renault se mostrou melhor do que o Honda. Isso fez Ayrton aumentar a pressão na McLaren e, principalmente, na fornecedora japonesa de motor, o que pareceu ter funcionado. A McLaren acabou o ano com um saldo de oito vitórias, contra sete triunfos da Williams.
Suzuka, novamente penúltima etapa do campeonato, foi pela terceira vez palco da conquista do título mundial de Ayrton na F1. Naquele 20 de outubro, aos 34 anos de idade, ele se tornou o mais novo tricampeão mundial na história da F1, posição que perderia para Sebastian Vettel em 2012.
A VOLTA DOS DEUSES
Quando Donington Park foi anunciada como palco do GP da Europa de 1993, a mídia especializada criticou muito a escolha do autódromo. “Donington é muito estreita, não há pontos de ultrapassagem” foi argumento recorrente.
Naturalmente, a expectativa era uma corrida chata, travada, daquelas que fazem o espectador cochilar diante da TV. O contrário, contudo, aconteceu.
Senna alinhou sua McLaren na quarta posição do grid de largada. Quando as luzes se apagaram, o brasileiro partiu para cima de Michael Schumacher, que o espremeu com sua Benetton. Assim, Ayrton posicionou seu carro pelo lado de dentro primeira da curva, rapidamente livrando-se do alemão.
Na curva seguinte, Senna superou o piloto austríaco Karl Wendlinger e colocou Damon Hill em sua mira. A ultrapassagem finalmente ocorreu três curvas depois. Conquistada a segunda posição, faltava a liderança da prova, ocupada por Prost.
O francês, piloto da Williams em 1993 e com um carro conhecidamente superior à McLaren, tentava abrir vantagem em relação ao resto do pelotão, até que Senna foi à sua caça.
Um detalhe importante: chovia, uma clara vantagem para o brasileiro. Prost patinou na reta Starkey, em descida, e Ayrton não perdeu tempo. Aproveitou o erro do francês para se aproximar e o ultrapassou. Os ex-colegas de equipe chegaram a se enfrentar entre as voltas 35 e 38, mas Senna se mostrou superior.
Ayrton mostrou que o problema não era Donington Park em si. A pista simplesmente exigia que, caso o piloto quisesse se destacar, precisaria ser assertivo e preciso.
O REI DE MÔNACO
Ayrton Senna descreveu sua relação como o circuito de Mônaco, em entrevista ao jornal L’Equipe, como “mais do que uma história de amor, uma paixão”.
A paixão nasceu em 1984 e rendeu a primeira vitória em 1987. A calorosa história de amor teve ainda cinco triunfos seguidos: 1989, 1990, 1991, 1992 e 1993.
Em 1993, Ayrton bateu o recorde de cinco vitórias de Graham Hill no GP de Mônaco. Damon, filho de Graham, cruzou a linha de chegada em segundo lugar e, na apertada sala de imprensa, virou-se para Ayrton e disse: “Se meu pai ainda estivesse vivo, ele certamente o parabenizaria! Você é o rei de Mônaco”.
Aquela foi a última vez que Senna correu na F1 pelas ruas de Monte Carlo.
SENNA SALVA ÉRIK COMAS
Em agosto de 1992, o circo da F1 se encaminhava para uma de suas pistas mais perigosas, a de Spa-Francorchamps, na Bélgica.
Durante os treinos, o francês Érik Comas, da Ligier, batera na curva Blanchmont, de modo que seu carro ficou atravessado na pista. Desacordado, Comas não conseguia desligar seu carro a fim de evitar um pior acidente.
Quando alcançou aquele ponto do longo circuito, Senna parou a McLaren e correu para ajudar o francês. Ele viu que Comas ainda pressionava inconscientemente o pedal do acelerador e, então, desligou o motor da Ligier.
Vinte e três anos depois, no que seria o aniversário de 55 anos de Ayrton, Comas participou de vídeo em que relembrou a ajuda que recebeu do brasileiro. “Ele desligou a ignição do carro, evitando assim uma explosão. Neste momento, Ayrton Senna salvou minha vida.”
‘Se você não for atrás de um espaço que existe, você não é mais um piloto de corrida’
A frase foi proferida por Senna em uma entrevista concedida a Jackie Stewart, tricampeão mundial de F1.
A conversa tensa tinha como pano de fundo um incidente ocorrido em 1990, em Suzuka. Ayrton, que cravara a pole position, julgava errado ter de alinhar no lado da pista onde teria menos aderência, argumentando que o segundo lugar, no caso Prost, obteria vantagem.
Inconformado com a polêmica decisão dos comissários, Senna não cedeu a posição ao francês na primeira curva do circuito, o que gerou uma colisão entre as McLarens.
Na entrevista, Sir. Jackie Stewart argumenta que a postura de Ayrton foi antidesportiva. Por conta de ter corrido em uma F1 altamente letal, o tricampeão escocês alertou aos perigos do esporte a motor.
Senna o escutava e parecia entender a questão da falta de segurança, mas, diante do que se passou em Suzuka em 1990, escolheu as referidas palavras: “Se você não for atrás de um espaço que existe, você não é mais um piloto de corrida”.
UM LEGADO ETERNIZADO
“Parecia o Papai Noel quando ele chegava. A família inteira fazia a festa. Ele saía pegando todas as crianças, botando nas costas, jogando para cima, era a maior bagunça!”, recordou Lalalli Senna, sobrinha de Ayrton, em entrevista à Folha.
A artista que criou o busto do Senna no setor A do autódromo de Interlagos tinha apenas oito anos quando seu tio morreu, mas assegura que a memória está fresca. “Eu me lembro dele muito bem porque, na verdade, ele era um tio muito marcante.”
Ayrton era conhecido por ter um jeito descrito como “muito família”. O paulista gostava de viajar para a praia com seus familiares.
“Ele não estava sempre aqui, mas, quando estava, era muito intenso”, disse Lalalli. Segundo ela, Ayrton era do tipo que prestava atenção e naturalmente se importava com o próximo, algo visto de maneira concreta no episódio com Comas na Bélgica.
Mais um momento que ajudou a transformar o menino Ayrton na lenda Senna, “simplesmente o melhor”, como observaram Tina Turner e tantos outros.
MARIA CLARA CASTRO / Folhapress