SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos quadrinistas mais celebrados do mundo, Harvey Pekar enxergava nas HQs a possibilidade de explicar para o leitor todos os assuntos, inclusive os mais espinhosos. Foi isso o que fez ao criar “Não É a Israel que Meus Pais Prometeram” ao lado do desenhista JT Waldman, sobre a história do povo judeu e o desencanto do artista com o estado de Israel.
Publicada lá fora em 2012, dois anos após a morte de Pekar, a obra chega agora ao Brasil pela editora Veneta entre a guerra que Tel Aviv trava contra o Hamas desde outubro do ano passado, conflito que aumentou a atualidade do livro.
“A guerra faz com que muitas pessoas se perguntem como chegamos até aqui. De certa forma, o livro pode ajudar a contextualizar algumas partes da violência atual”, diz Waldman, que é judeu assim como Pekar.
Apesar disso, ele considera que outras partes da HQ ficaram datadas. “Ela não aborda o nível atual de antissemitismo no mundo que ocorreu como resultado da guerra”, diz.
Sua visão é amparada em pesquisas. Dados coletados em um canal de denúncias administrado pela Conib, a Confederação Israelita do Brasil, e a Fisesp, a Federação Israelita do Estado de São Paulo, mostram que denúncias de antissemitismo no Brasil aumentaram dez vezes em outubro passado em relação ao mesmo mês de 2022, indo de 44 para 467 registros, numa tendência vista ainda na França e Alemanha.
Por outro lado, pessoas de origem Palestina também têm sofrido com o aumento do preconceito. Uma criança americano-palestina, por exemplo, foi morta a facadas no estado americano de Illinois menos de dez dias após a eclosão da guerra.
De certa forma, essas são reverberações da brutalidade em curso nos territórios conflagrados pelo conflito. Em 7 de outubro do ano passado, o Hamas atacou Israel, deixando 1.200 pessoas mortas. Em resposta, Tel Aviv lançou uma campanha militar sobre a Faixa de Gaza que já matou mais de 30 mil no território palestino.
“Parece que os dois lados estão contentes em se destruírem mutuamente”, diz Waldman, que, além de desenhista, é especialista em estudos bíblicos e arte judaica.
Ele e Pekar começaram a trabalhar juntos em 2007. À época, o artista o convidou para colaborar na produção de uma HQ sobre a contribuição judaica para os quadrinhos americanos do século 20. O trabalho durou seis semanas, período no qual eles se comunicavam por telefone.
“Seis meses depois, Harvey me ligou cedo, quando eu mal estava acordado, e deixou uma mensagem de voz dizendo que tinha um contrato para um livro que seria especialmente adequado para mim.”
O livro em questão se tornou “Não É a Israel que Meus Pais Prometeram”. “Senti que ganhei um tíquete dourado. Foi a oportunidade da minha vida”, diz Waldman.
Com 176 páginas, a obra se assemelha a um livro de formação, no qual Pekar destrincha a sua relação com Israel desde a infância até a vida adulta.
Já nas primeiras páginas, ele deixa claro que seu modo de enxergar o país mudou ao longo dos anos. Nascido em Cleveland, no estado americano de Ohio, Pekar cresceu num lar sionista, ou seja, seus pais defendiam a criação de um estado judeu.
À medida que foi envelhecendo, o artista passou a ter uma visão mais cética em relação a esse ideário. A mudança de perspectiva é recriada na obra, na qual Pekar e Waldman são os personagens principais. “Quero contar como perdi a fé em Israel depois que cresci e saí da casa dos meus pais”, diz o personagem do quadrinista.
Ao longo do livro, é como se ele fosse um cicerone, conduzindo Waldman e o próprio leitor por duas histórias a da sua infância e a do povo judeu. Em meio à narrativa, Pekar tece comentários cheios de acidez e sarcasmo, características que permeiam o trabalho do artista.
Ele se tornou célebre em 1976, quando publicou a cultuada “American Splendor”, HQ em que o americano, então arquivista de um hospital, retratava seus hábitos e os hábitos de seus parentes e amigos. Em 2003, a obra deu origem ao filme “Anti-Herói Americano”, indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado.
Para muitos, Pekar foi um dos principais nomes da língua inglesa a usar o cotidiano de gente comum para criar histórias atraentes. Não à toa, ele costumava dizer que a vida comum é cheia de complexidade. Em “Não É a Israel que Meus Pais Prometeram”, o quadrinista deixa isso evidente ao usar a rotina de sua família como fio condutor da narrativa.
“O livro é uma visão sobre a história do relacionamento do povo judeu com a terra de Israel”, diz Waldman. “Um convite para que o leitor crie sua própria perspectiva e examine as promessas feitas a cada geração sobre essa terra.”
NÃO É A ISRAEL QUE MEUS PAIS PROMETERAM
Preço R$ 74,90 (172 págs.)
Autoria Harvey Pekar e JT Waldman
Editora Veneta
Tradução Cris Siqueira
MATHEUS ROCHA / Folhapress