DENVER, EUA (FOLHAPRESS) – O Brasil pode perder a onda da inteligência artificial e ficar para trás em inovação se não mudar de postura, diz o professor de ciência da computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Virgilio Almeida, que está no grupo de especialistas chamados ao Palácio do Planalto para falar sobre os impactos da IA na economia, no mundo do trabalho e o desafio regulatório.
Almeida foi convocado para aconselhar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a tecnologia e avalia que o investimento em pesquisa precisa subir dez vezes.
Segundo ele, o país precisa definir os incentivos corretos para prevenir que IAs desenvolvidas no exterior não tenham “efeitos indesejados” como a substituição descontrolada do trabalho.
Embora Lula tenha eleito a IA como uma prioridade para o encontro do G20 em julho, o Estado brasileiro avançou muito pouco desde novembro, quando a ABC (Academia Brasileira de Ciência) divulgou um estudo coordenado por Almeida com um alerta: o país está dez anos atrasado na pesquisa em inteligência artificial.
“Nada mudou”, diz Almeida, que passou pelo Berkman Klein Center for Internet and Society na Universidade de Harvard.
Hoje, o Executivo trabalha em uma revisão de um conjunto de diretrizes para o desenvolvimento da tecnologia, chamada Ebia (Estratégia Brasileira para Inteligência Artificial), e o Senado discute uma proposta de marco regulatório, cujo último texto, do senador Eduardo Gomes (PL-TO), foi apresentado no último dia 25.
Para o pesquisador, o país precisa estabelecer, além de regulação adequada, políticas de investimento para capacitar mão de obra, construir infraestrutura e manter os talentos aqui. Isso deve ser feito em parceria com empresas de tecnologia e outros países interessados em desenvolver IA.
A tecnologia foi o principal pilar da reunião magna da ABC, realizada nos dias 7 e 8 de maio, no Museu do Futuro, no Rio de Janeiro. Almeida falou com a reportagem por telefone.
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PERGUNTA – No ano passado, o sr. falou sobre a dificuldade de atrair mão de obra especializada em inteligência artificial para o Brasil. Algo mudou?
VIRGILIO ALMEIDA – Nada mudou. Nós não evoluímos com medidas e políticas para atrair especialistas em IA e, dado a procura global desse tipo de conhecimento, esses especialistas são extremamente atraídos por recursos computacionais, por salários, coisas que nós não temos no Brasil na escala que é necessário para avançar nessa área de inteligência artificial.
P – Em apresentação para o presidente Lula, o sr. mencionou a necessidade de criar uma visão brasileira de IA. Pode elaborar esse conceito?
VA – A ideia de uma visão brasileira sobre IA não é desenvolver uma nova tecnologia do zero, porque não há tempo nem recursos para isso no país. Mas é importante ajustar as políticas públicas, ajustar a regulação global à realidade brasileira.
O Brasil não tem as tecnologias avançadas, não tem as estruturas computacionais necessárias para avançar na IA e, ao mesmo tempo, corre o risco de ter algumas consequências indesejáveis. Por exemplo, o excesso na busca de automação para acelerar certos processos econômicos pode trazer resultados indesejáveis.
Em vez de se considerar uma política pública visando usar a inteligência artificial para automatizar o trabalho, seria mais importante usar a inteligência artificial para complementar o trabalho humano e, com isso, ter exigências de incentivos para que a inovação viesse dessa complementação da inteligência artificial com o humano.
Uma outra característica para a questão de uma visão brasileira é levar em consideração o desenvolvimento de tecnologias e bases de dado, baseadas na língua portuguesa e também lembrar a necessidade de proteger as línguas indígenas do país.
P – O sr. mencionou o desafio de superar o medo da IA. O Brasil tem esse problema mesmo tendo uma cultura de adesão rápida à tecnologia?
VA – Sim. O Brasil deve procurar formular políticas para controlar o avanço da IA na economia, nos vários setores. É importante ver que o país não quer que a IA siga o caminho das redes sociais, que tem gerado tantas preocupações e trazido dificuldades para a política e para a democracia. Então é importante prevenir e começar desde o início a formular as políticas que regulem o caminho que o Brasil quer adotar com a inteligência artificial.
P – Falta ao país um grande centro de pesquisa em IA? Qual seria a diferença para os atuais centros de pesquisa criados a partir da Estratégia Brasileira para Inteligência Artificial?
VA – Existem por volta de dez centros de pesquisa aplicada (CPAs) financiados pelo edital de Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, Fapesp e Comitê Gestor da Internet. São centros que têm propósito específico para IA, como saúde, indústria, cidades inteligentes, etc. É uma excelente iniciativa, porém o financiamento é ainda muito limitado para formar gente e desenvolver pesquisas aplicadas no nível que o país precisa para não perder a oportunidade da IA.
Comparando com centros de pesquisa em IA nos EUA ou na Europa, o nosso orçamento [R$ 1 milhão por ano do recurso MCTI-FAPESP-CGI e R$ 1 milhão de parceiros privados] é insuficiente para ter estrutura computacional avançada, formar pessoal em pesquisa e desenvolver tecnologias de IA. É preciso de recurso pelo menos uma ordem de grandeza a mais [dezenas de milhões de reais].
P – O Brasil tem uma posição privilegiada em termos de matriz energética para atrair data centers. Essa predisposição pode ajudar no gargalo de infraestrutura, embora essa capacidade computacional ainda esteja muito concentrada no Sudeste?
VA – O Brasil certamente tem uma matriz energética limpa, mais limpa do que a maior parte dos países. Agora, a instalação de grandes data centers para IA depende de orçamento, que o Brasil tem que definir se vai ter.
Os maior que existem hoje em dia no mundo são data centers das empresas de tecnologia. O Brasil precisa começar a pensar em alternativas para ter acesso a esses data centers. Uma alternativa seria construir esses data centers no Brasil ou buscar acordos internacionais, de modo a ter uma composição, projeto global, por exemplo, com países similares do Sul Global, países com quem o Brasil tem relação na construção de uma infraestrutura computacional participativa. Isso poderia diminuir os custos e acelerar a instalação desses recursos nos países do Sul Global.
P – O sr. fala da necessidade de criar uma tecnologia de ponta em IA no país, mas são poucos os países com essa capacidade. O Brasil tem a capacidade de dar esse grande salto técnico?
VA – O Brasil não tem os recursos humanos, não tem a capacidade computacional de comunicação necessária para esse avanço, mas fazendo, trilhando esse caminho de políticas públicas, investimentos permanentes em ciência e tecnologia, uso das vantagens competitivas do Brasil, como por exemplo um sistema de pós-graduação grande e amplo no Brasil, você tem recursos humanos que são potencialmente importantes para a inteligência artificial e também o mercado brasileiro apresenta vantagens: é grande.
Também há a disponibilidade de grandes bases de dados para temas importantes como educação, saúde, meio ambiente.
P – O Brasil teria capacidade de trilhar esse caminho de maneira independente ou parceria com as empresas globais do setor seria essencial?
VA – O Brasil, como um país de grande dimensão de poder econômico, tem condições de estabelecer acordos cooperativos com as empresas de tecnologias, garantindo as vantagens do país, buscando a soberania, sem deixar de firmar acordos com outros países que avançam nesse setor, fazer colaborações com as grandes empresas. Isso, sem descuidar de criar as condições aqui no país em termos de investimento em pesquisa, recursos computacionais, políticas públicas. O Brasil já tem uma experiência regulatória muito importante e que foi apreciada pelo mundo inteiro na construção do Marco Civil da Internet e, posteriormente, na lei de proteção de dados pessoais.
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RAIO-X
Virgilio Almeida, 74
Professor de engenharia elétrica da UFMG, pesquisador associado do Berkman Klein Center for Internet and Society na Universidade de Harvard e diretor da Academia Brasileira de Ciências.
PEDRO S.TEIXEIRA / Folhapress