9 em cada 10 usuárias de drogas deixam a cracolândia, em São Paulo, após gravidez

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando descobriu a segunda gestação, há cerca de cinco anos, uma ex-usuária de drogas acumulava 22 anos nas ruas, a maior parte na cracolândia, ponto na região central de São Paulo conhecido por aglomerar viciados em crack.

Diferente do primeiro filho, cuja guarda foi tirada dela sete meses após o parto devido a mais uma recaída do vício, ela procurou acompanhamento médico e aderiu a um tratamento de redução de danos para se preparar para a chegada da filha, hoje com quatro anos.

Desde então, a mulher de 38 anos diz estar longe das drogas, mudou-se para uma ocupação no centro da capital paulista com o marido e enfrenta uma rotina intensa de cuidados com a menina, portadora de paralisia cerebral, microcefalia e uma doença rara que afeta o funcionamento do fígado.

A identidade dessa mãe e das outras duas mulheres citadas nesta reportagem não será revelada para preservar o anonimato dos filhos e para protegê-las de possíveis perseguições.

Assim como ela, a maioria das gestantes em situação de rua ou frequentadoras da cracolândia decidem deixar as ruas e o vício para exercer a maternidade. O grupo de trabalho criado em 2016 para acompanhar esses casos na região central de São Paulo calcula que, das 220 mulheres atendidas entre 2020 e 2022, 12% encaminharam os bebês para adoção ou para parentes próximos. O restante mudou de vida para cuidar dos recém-nascidos.

Entre os 27 casos em que a guarda da criança foi tirada das mulheres com dependência química logo após o parto, quatro bebês foram encaminhados para adoção e os demais ficaram com parentes. “Nosso objetivo é evitar a institucionalização das crianças e ajudar a mãe a se organizar para sair da maternidade com o recém-nascido”, diz a integrante do grupo, Carolina Perracini, articuladora de humanização da Secretaria de Estado de Saúde.

A chamada entrega protegida demanda um processo jurídico, por isso, a Defensoria Pública atua em parceria com agentes estaduais e municipais nas áreas de saúde e assistência social para dar apoio às mulheres que não desejam ficar com os recém-nascidos.

Antes do grupo de trabalho, a destituição do poder familiar das mães nessas situações era quase imediata após o parto, ainda na maternidade, onde os recém-nascidos de puérperas em situação de rua ou dependência química eram chamados de “bebês sociais”.

A decisão final sobre se a mãe tinha condições ou não de ficar com o bebê cabia às maternidades e às assistentes sociais, sem acompanhamento da mulher antes do parto. “Fortalecer o desejo das mulheres, seja de manter ou não o filhos, é um trabalho coletivo”, continua Carolina sobre os 71 participantes do grupo que discute cada caso de gestação nas ruas da região central.

Quando deu à luz as filhas gêmeas em 2015, outra ex-frequentadora da cracolândia conta que foi separada das bebês uma semana após o parto, quando ela perdeu a guarda por causa do vício em drogas. Uma das recém-nascidas teve que ficar internada por apresentar crises de abstinência fora da barriga da mãe. Ela só soube da decisão quando recebeu alta.

Emocionada, ela diz que a última vez que soube do paradeiro das meninas elas estavam com dois anos em um abrigo. Agora, a mãe relembra o passado com a terceira filha no colo, nascida há 11 dias no mesmo hospital onde deu à luz as gêmeas há nove anos.

Ao lado do marido que conheceu nas ruas, e também ex-usuário de drogas, ela quer se dedicar à maternidade. O casal mora em um hotel social na região central da cidade e é acompanhado por programas sociais do município.

No início da gestação, ela conta ter entrado em um processo gradual de redução do uso de crack e enfrentou crises de abstinência com sintomas como falta de ar e dores pelo corpo.

Quando uma frequentadora da cracolândia se torna gestante, os agentes de saúde a incentivam a fazer o pré-natal e são acompanhadas de perto pelas assistentes sociais, mesmo se insistirem em ficar nas ruas. Os partos são realizados nas maternidades do Amparo Maternal, entidade que acolhe gestantes e puérperas com seus bebês há 85 anos, e da Santa Casa de Misericórdia.

Se a mulher decide não ficar com o recém-nascido, ou não apresenta condições, a legislação brasileira dá prazo de 18 meses para a rede de acolhida encontrar parentes da mãe ou do pai dispostos a ficar com a guarda. Caso não encontre, a criança é encaminhada para abrigos até ser adotada.

Mesmo assim, a mulher que deu à luz tem a opção de escolher o nome do recém-nascido e deixar uma carta ou foto anexados ao prontuário de destituição da guarda. Ao completar 18 anos, a pessoa adotada pode ter acesso a todo processo judicial, segundo a defensora Katia Cilene Oliveira Giraldi, integrante do grupo de trabalho.

Apesar de ter negado a maternidade até os sete meses de gestação, quando fez os primeiros exames de pré-natal, outra ex-usuária também deixou as ruas para cuidar em tempo integral do filho de dois meses em um abrigo municipal.

Mesmo com a barriga visível, enquanto ainda era frequentadora da cracolândia, ela lembra que não aceitava a própria condição e só entendeu que seria mãe ao ouvir o coração do bebê durante o ultrassom. Hoje com 23 anos, ela teve a primeira filha aos 16 anos. Quando a menina tinha nove meses, ela foi presa por envolvimento com drogas, e só foi solta quatro anos depois, quando saiu da cidade do interior paulista onde morava e se mudou para as ruas do centro da capital. A filha ficou com sua avó.

A mesma avó foi também quem a criou junto com seus cinco irmãos, todos filhos de uma usuária de crack, morta há alguns anos. Os quatro anos que passou na cracolândia antes de engravidar do segundo filho a distanciou da família, com quem não tem mais contato.

O abuso de drogas e álcool durante a maior parte da gravidez a fez sentir culpa diante da possibilidade do filho nascer com sequelas. Após os primeiros exames, ela foi convencida a ir para um abrigo municipal, embora tenha tido uma recaída na reta final da gestação.

O bebê nasceu prematuro e ficou uma semana hospitalizado para tomar antibióticos contra a sífilis, contraída pela mãe durante a gestação. Até agora, ele não apresentou problemas de saúde, segundo as assistentes sociais que a acompanham.

A articuladora de humanização que integra o grupo de trabalho dedicado às grávidas diz que são poucos os casos em que os bebês de mães usuárias nascem com algum tipo de sequela. “Poucos vão para a UTI logo após nascer”, diz.

MARIANA ZYLBERKAN / Folhapress

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