SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando o CFM (Conselho Federal de Medicina) proibiu que médicos realizassem a assistolia fetal em casos de aborto por estupro, o que estava em jogo era a suspensão e cassação dos registros médicos.
Mas a movimentação encontrou ecos na política, e o número da normativa do conselho aparece em oito resoluções da Câmara dos Deputados, publicadas no Diário Oficial em abril.
O procedimento é indicado para casos de interrupção da gestação acima de 22 semanas, consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar que ele nasça com sinais vitais. É recomendado pela OMS e tido pelos protocolos nacionais e internacionais de obstetrícia como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas.
Das propostas na Câmara, cinco são moções de apoio duas de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ) e de repúdio duas, sendo que uma está fora de tramitação. O deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP) é autor de dois requerimentos para realização de seminários sobre o tema, um na Comissão de Saúde e outro na de Direitos Humanos, em que ele cita “a importância de debater o direito à vida”. Ele também assina as moções de apoio sobre o tema.
As moções de repúdio vêm dos deputados Erika Kokay (PT-X), Erika Hiltonn (PSOL-RJ), Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e Henrique Vieira (PSOL-RJ).
O único projeto de lei que cita especificamente a resolução do CFM é de autoria da deputada Clarissa Tércio (PP-PE). Ali, a ideia é acrescentar um artigo ao Código Penal de 1940 para proibir a assistolia fetal.
Segundo a antropóloga Naara Luna, professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), é novidade que as movimentações da câmara mirem os profissionais da saúde. Ela, que pesquisa essa movimentação desde o início do primeiro governo Lula (PT), em 2003, diz que, até os anos 2000, “a maior parte dos projetos referentes a aborto eram para aumentar os permissivos, como anencefalia, incompatibilidade com a vida”. Era um rescaldo da onda liberal da constituinte.
A virada veio, diz Luna, justamente nesse começo de governo do PT, e se intensificou a partir dos debates sobre biossegurança e a aprovação da lei sobre o tema em 2005, que autorizou a utilização de células-tronco obtidas a partir de embriões de fertilização in vitro (FIV).
É do mesmo ano a primeira proposição do estatuto do nascituro, que foi arquivado, mas reformulado em 2007 pelas mãos dos deputados Luiz Bassuma, então do PT-BA, e Miguel Martini, do então PHS-MG, partido hoje aglutinado no Podemos.
“Surgem projeto de fetos receber herança, seguro da vida. Fala-se em direitos fetais e regulamentação da maternidade”, diz Luna. “Criou-se uma categoria de aborto doloso.”
Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília) afirma que o estatuto representa um projeto mais radical, diferente da estratégia observada hoje nos movimentos que lutam contra o direito ao aborto.
Mesmo nas discussões sobre direitos de fetos e embriões, onde se parte do pressuposto de quando seria o início da vida humana, o foco estava longe dos profissionais da saúde.
Hoje, segundo Biroli, eles entram em foco também porque existe uma conveniência em travar a batalha fora do escopo político e dentro do escopo da saúde.
A professora da UnB entende que a iniciativa do CFM não é ilegal, mas causa um efeito “que vai a contrapelo da lei e mina a legalidade existente”.
“É uma dinâmica de esvaziar a possibilidade de avanço nos direitos. Você posiciona aqueles que são favoráveis ao aborto em torno de algo que já existe [aborto em casos de estupro, risco à vida da mãe, anencefalia], sem o ônus de disputar publicamente o fim do direito de uma mulher ou criança estuprada. É uma espécie de status legal paralelo”, afirma.
Luna diz que tais estratégias prevalecem e se multiplicam hoje. “Assim, não é mais necessário desafiar publicamente a ideia de que uma mulher que passa por um estupro tem direito ao aborto.” Ela diz que alguns desses obstáculos são, justamente, o constrangimento de médicos e profissionais da saúde.
O movimento não é único no Brasil. Biroli afirma que, à medida que o acesso ao aborto legal se ampliou na América Latina, as reações à ampliação mudaram de cara. Ela cita o exemplo do Uruguai, aonde, diante da descriminalização, ativistas contrários ao direito de escolha da mulher apelaram para que médicos se valessem da objeção de consciência para não fazer os procedimentos.
No Brasil, onde o tema tramita no STF (Supremo Tribunal Federal), os defensores do direito ao aborto se ocupam de garantir o que existe hoje, sob ataques por vezes sutis.
São, segundo ela, esses movimentos pequenos, como as moções de apoio ao CFM, que vão engrossando o caldo do que se entende como disputa pelo tema hoje.
Apesar de o debate em torno da descriminalização estar no Judiciário, o estatuto do nascituro de 2007 não foi arquivado. Há mais de 15 anos que ele tramita de conselho em conselho, perigando ir a votação na Câmara a qualquer momento.
BÁRBARA BLUM / Folhapress